sábado, 1 de janeiro de 2011

TERRA A DENTRO

Múltiplos interesses levam-nos a nós, humildes redatores desta folha, a empreendermos pequenas excursões ao interior deste velho e amado Brasil.
Vivendo do altar e para o altar, presumindo dever cumprir, bem ou mal, a nossa missão, a ela corremos, senão com os cinco talentos da parábola, ao menos com aqueles dois, ou com o único que deve por em giro e a render o servo que não quiser ser condenado pelo Senhor por havê-los guardado debaixo da terra.
Demais, fica-nos como centelha sob as cinzas dos janeiros já passados, do fracasso das desilusões, e cuidados quotidianos por vezes tão amargos, um decidido amor por esta esplêndida natureza de nosso torrão natal, tão belo, tão variado, tão majestoso na vastidão de seus campos nunca taciturnos pela desolação dos desertos arenosos e estéreis; das nossas montanhas ricas de sua flora soberba e incomparável; dos nossos rios a banharem ora os campos cobertos de cultura, ora as embrenhadas florestas que fazem recordar o selvagem primitivo, ora essa multidão do cidadezinhas, que tanto se vão transformando e mudando de caráter ao passo que o grito da locomotiva, e o cheiro do carvão de pedra vão atirando para o esquecimento o poético espetáculo das tropas e comboios tradicionais, que acordavam os ecos da floresta com o tritinar das campainhas da madrinha, e o canto semibárbaro do arrieiro que conduzia as caravanas carregadas dos produtos da primitiva lavoura.
Deixemos os cento e muitos quilômetros da estrada de ferro Central, com suas grandes estações de Belém, Barra, Entro Rios e Serraria; deixemos a Leopoldina sumindo-se nas sinuosidades de sua estreita bitola na garganta dos morros cobertos do cafezal mineiro; figure o leitor uma via férrea microscópica, cuja bitola é apenas de algumas polegadas, e o wagon um caixãozinho artisticamente feito, e dividido em dois compartimentos para a primeira e para a segunda classe no mesmo edifício, faça-a percorrer apenas a extensão de quatro quilômetros, rangendo e silvando como pequeno baixel em mar agitado e grosso, mas comodamente, e sem produzir enjoo, e terá ideia da viagem que nos conduz da estação das Bicas para a pequena, mas interessantíssima cidade de Guarará, centro de Minas, região da Mata.
Como todas as povoações mineiras, que temos tido a felicidade de visitar, Guarará estende suas ruas, por vezes elegantes, ao longo do seio tortuoso de quatro grandes morros, outrora cultivados pelo café, mas hoje completamente descobertos, passando à categoria de pastos, onde se vêm, de longe, moverem-se as vacas tosando a gramínea que lhes cobre o avermelhado solo, donde surgem, em variados sítios, árvores colossais, que escaparam ao machado devastador dos antigos descobridores.
Não é de certo Guarará uma das mais antigas povoações de Minas, a contar pela idade de sua grandiosa igreja matriz, que remonta muito pouco além de meio século.
Essa matriz é um templo majestoso, de sólida construção, embora pouco elegante seja seu estilo.
Ultimamente, as duas paredes laterais têm cedido alguma coisa da linha do prumo, o que já dispôs o espírito religioso de seus filhos a empreenderem conserto radical.
No alto de uma elegante colina alveja, solitária e poética, a elegante capelinha de Nossa Senhora do Rosário, cuja festividade teve lugar ali no último domingo, 15 de Setembro, com o maior brilho possível.
O dia estava esplendido, e tudo concorreu para abrilhantar aquela festa, um dos muitos atos do culto que nunca sofre mínima quebra no religioso espírito dos mineiros.
O elemento da humilde classe dos trabalhadores do campo, os numerosíssimos cidadãos libertos, tomam nessa festa parte vivíssima, juntando aos festejos externos do templo, aqueles tradicionais divertimentos, misto de religião e simples poesia dos antigos costumes do povo de origem.
A Congada é uma espécie de melodrama acompanhado de danças, e instrumentos das musicas africanas, das quais ainda se acham esses vestígios vivos e talvez imorredouros nos trabalhadores de cor, descendentes daquele gênero da primitiva colonização.
Foi assim, que em plena republica três majestades genuinamente brasileiras compareceram à festa: o imperador e a imperatriz do Divino, e um respeitável rei do Congo, com seus ministros, generais s coorte, que deram audiência e receberam embaixadas na frente do templo, depois de finda a cerimônia religiosa.
Ao cair da tarde teve lugar a procissão, lindo e edificante espetáculo de uma fila de fieis que seguiam os andores, ocupando em seu desfilar nada menos de meio quilômetro literalmente cheio de povo.
Ao recolher da procissão teve lugar o Te Deum, havendo sermões ao Evangelho e à noite.
Há aqui uma nota a consignar para gloria de Deus, e honra do devoto povo mineiro.
Perguntamos se já não havia ali aparecido emissário das falsas seitas, que tem tentado estabelecer-se em tantos lugares de nosso país.
Nada: nem noticias dos apóstolos do erro naquelas felizes paragens, onde a lavoura e o comércio local vivem tranquilos, sem outra alteração mais do que um pouquinho desses arrancos políticos com que nos querem fazer felizes desde a capital até os mais remotos sertões, os patriotas que não podem conter o excessivo amor e desejo de se consagrarem de corpo e alma aos puros interesses populares, pelos quais são capazes de dar até a própria ultima gota de seu sangue.
O povo mineiro, os pacíficos agricultores, o comércio modesto daquelas localidades já não sabem como agradecer aos políticos tanta paz, harmonia, cordialidade, ordem e progresso, que seu patriotismo tem levantado por todas as partes!
Tirassem a política dos políticos, e a seca, o as inundações, e a selvageria, e os ódios, o os carrapatos invadiriam tudo.
Muito, muito vai o Brasil devendo à política dos tempos atuais.
E apesar de tudo, em lugares como Guarará, vive tudo feliz o risonho no seio da mais abençoada abastança, oferecendo a Deus as primícias do seu honrado e honestíssimo trabalho.
Quanto a nós, voltamos gratíssimos do dia e meio que nos foi permitido conviver com o honrado povo guararaense.
As nossas saudades.
  

Jornal "O Apóstolo", ANNO XXXI, N.º 105 
Quarta-feira, 18 de Setembro de 1895

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