BANDAS DE MÚSICA
Orçava
a minha idade pelos sete ou oito anos (que saudade desse tempo...) quando em
Guarará existia, muito bem organizada e multo bem regida, uma banda de música
formada apenas de elementos femininos, fiquei encantado a primeira vez que a vi
a ouvi: Julguei que não houvesse corporação congênere que executasse tão bem os
dobrados e as marchas do cartaz daquela época. Para mais impressionar a minha
imaginação Infantil, havia a circunstância de serem bonitas as garotas e de se
apresentarem uniformizadas, com saia azul marinho; blusa creme e uma boina
feita com pano das duas cores, sempre que se exibiam, quer na sede das suas
evoluções artísticas, quer nas localidades vizinhas, para onde eram contratadas
como atração para as festas religiosas e outras cerimônias. Quem poderia, aos
olhos atônitos do menino ignorante e impregnado de romantismo piegas, arrancar
melhores notas daqueles instrumentos de metal rebrilhantes ao sol?
A
verdade, porém, devia estar com um professor despeita do que afirmava não terem
as moças a resistência física para soprar pistons e trombones, provocando com esse conceito atrevido todo o
meu ódio de admirador entusiasta e desconhecido.
Desfez-se
a charanga guararense porque as suas componentes foram casando e tornou-se
necessário alisar o fogão e criar os filhos, funções incompatíveis com o estudo
dos mi bemóis e das semicolcheias. Não surgiu nova geração para substituí-las.
Nunca mais ouvi falar que pelo Interior houveste banda de música feminina, a
não ser há poucos meses, que de Uberaba veio esta notícia. E agora adianta-se
que em Uberlândia aparece iniciativa semelhante.
Ninguém
está solicitando a minha , mas, se na meninice fui tão ocultamente exaltado por
aquele grupo da pequenina e obscura cidade da zona da mata, hoje, na velhice,
sou contra. Não pensem os leitores que eu seja retrógrado e que me oponha por
motivos de falsa moralidade de costumes. Em defesa do meu espírito evoluído. Já
disse que estou matriculado no clube da respeitável Sra. Luz del Fuego. O caso
é que as palavras do músico despeitado, que tanto rancor me inspiraram outrora,
voltam a bailar-me no pensamento, desta vez despertando raciocínio e adesão.
Essas adolescentes que serão convocadas para participar do grêmio estarão em
condições de suportar o esforço necessário para fazer funcionar esses aparelhos
metálicos que às vezes exigem tanta energia muscular de homens fortes?
Parece-me que a execução de um pistom, por exemplo, dependa de força pulmonar
acima das possibilidades de uma menina ou mesmo de uma moça de 18 ou 20 anos
que não seja muito robusta. Mas eu estou aqui invadindo os domínios da ciência,
em que sou obtuso. Digam a respeito os srs. médicos, que eu lhes acato
incondicionalmente o parecer.
O
que posso dizer, entretanto, é que as ovações conquistadas por corporações
dessa espécie não passam de manifestação de condescendência, às vezes
excessiva. E a arte para mim não deve ser incentivada com complacência.
Exultei-me certa ver com o que sucedeu à Ladário Teixeira em Buenos Aires. A
capital argentina, se não é mais hoje, nessa época era um centro de aprimorada
cultura artística. O saxofonista uberlandense, quase no começo da sua carreira,
foi realizar ali alguns concertos. Estava tímido porque nas vésperas um
violinista de alguma fama havia sido pateado impiedosamente. Foi quando um crítico
lhe advertiu que ele não contasse com a circunstância de ser cego para receber
aplausos ou tolerâncias; que a plateia não tomaria o defeito físico em
consideração para julgamento do seu mérito. A sentença seria fundamentada apenas
nos primores ou na claudicância da arte. Ladário Teixeira foi para o tablado um
pouco trêmulo. Mas o seu saxofone maravilhoso dispensa benevolências de toda
espécie. A casa repleta e culta sabia pronunciar-se com justiça. O concerto do
nosso conterrâneo foi um sucesso e um estímulo para novos triunfos que ele
alcançou no Brasil e no estrangeiro. A sua cegueira não é manto de
misericórdia; talvez seja fator de concentração para que ele possa
espiritualmente enxergar melhor do que os videntes.
A
música é arte, e a arte não pode ser compreendida senão na apreciação de si
mesma, sem subterfúgios e sem atenuantes, sem prevenções e sentimentalismos.
Sílvio Romero, lendo os versos de Cruz e Souza, e atribuindo ao poeta negro
apenas uma verbosidade retumbante, talvez fosse mais equânime do que depois,
exaltando o seu estro, ao saber que se tratava de um rapaz paupérrimo, com
mulher e filhos, tuberculoso e metido numa repartição da Central do Brasil. As
condições morais do homem influíram no modo de conceituar a poesia. Agiu o
coração generoso desmentindo o que o cérebro esclarecido havia articulado.
Vamos
ensinar as meninas a fazer crochê, ou coar café, preparando-as para o
matrimônio que o território nacional ainda está muito despovoado...
LYCIDIO PAES
LYCIDIO PAES
Jornal "O Repórter", Uberlândia, terça-feira, 25 de agosto de 1959.
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