sexta-feira, 23 de maio de 2014

BANDAS DE MÚSICA



BANDAS DE MÚSICA

Orçava a minha idade pelos sete ou oito anos (que saudade desse tempo...) quando em Guarará existia, muito bem organizada e multo bem regida, uma banda de música formada apenas de elementos femininos, fiquei encantado a primeira vez que a vi a ouvi: Julguei que não houvesse corporação congênere que executasse tão bem os dobrados e as marchas do cartaz daquela época. Para mais impressionar a minha imaginação Infantil, havia a circunstância de serem bonitas as garotas e de se apresentarem uniformizadas, com saia azul marinho; blusa creme e uma boina feita com pano das duas cores, sempre que se exibiam, quer na sede das suas evoluções artísticas, quer nas localidades vizinhas, para onde eram contratadas como atração para as festas religiosas e outras cerimônias. Quem poderia, aos olhos atônitos do menino ignorante e impregnado de romantismo piegas, arrancar melhores notas daqueles instrumentos de metal rebrilhantes ao sol?        
A verdade, porém, devia estar com um professor despeita do que afirmava não terem as moças a resistência física para soprar pistons e trombones,  provocando com esse conceito atrevido todo o meu ódio de admirador entusiasta e desconhecido.
Desfez-se a charanga guararense porque as suas componentes foram casando e tornou-se necessário alisar o fogão e criar os filhos, funções incompatíveis com o estudo dos mi bemóis e das semicolcheias. Não surgiu nova geração para substituí-las. Nunca mais ouvi falar que pelo Interior houveste banda de música feminina, a não ser há poucos meses, que de Uberaba veio esta notícia. E agora adianta-se que em Uberlândia aparece iniciativa semelhante.
Ninguém está solicitando a minha , mas, se na meninice fui tão ocultamente exaltado por aquele grupo da pequenina e obscura cidade da zona da mata, hoje, na velhice, sou contra. Não pensem os leitores que eu seja retrógrado e que me oponha por motivos de falsa moralidade de costumes. Em defesa do meu espírito evoluído. Já disse que estou matriculado no clube da respeitável Sra. Luz del Fuego. O caso é que as palavras do músico despeitado, que tanto rancor me inspiraram outrora, voltam a bailar-me no pensamento, desta vez despertando raciocínio e adesão. Essas adolescentes que serão convocadas para participar do grêmio estarão em condições de suportar o esforço necessário para fazer funcionar esses aparelhos metálicos que às vezes exigem tanta energia muscular de homens fortes? Parece-me que a execução de um pistom, por exemplo, dependa de força pulmonar acima das possibilidades de uma menina ou mesmo de uma moça de 18 ou 20 anos que não seja muito robusta. Mas eu estou aqui invadindo os domínios da ciência, em que sou obtuso. Digam a respeito os srs. médicos, que eu lhes acato incondicionalmente o parecer.
O que posso dizer, entretanto, é que as ovações conquistadas por corporações dessa espécie não passam de manifestação de condescendência, às vezes excessiva. E a arte para mim não deve ser incentivada com complacência. Exultei-me certa ver com o que sucedeu à Ladário Teixeira em Buenos Aires. A capital argentina, se não é mais hoje, nessa época era um centro de aprimorada cultura artística. O saxofonista uberlandense, quase no começo da sua carreira, foi realizar ali alguns concertos. Estava tímido porque nas vésperas um violinista de alguma fama havia sido pateado impiedosamente. Foi quando um crítico lhe advertiu que ele não contasse com a circunstância de ser cego para receber aplausos ou tolerâncias; que a plateia não tomaria o defeito físico em consideração para julgamento do seu mérito. A sentença seria fundamentada apenas nos primores ou na claudicância da arte. Ladário Teixeira foi para o tablado um pouco trêmulo. Mas o seu saxofone maravilhoso dispensa benevolências de toda espécie. A casa repleta e culta sabia pronunciar-se com justiça. O concerto do nosso conterrâneo foi um sucesso e um estímulo para novos triunfos que ele alcançou no Brasil e no estrangeiro. A sua cegueira não é manto de misericórdia; talvez seja fator de concentração para que ele possa espiritualmente enxergar melhor do que os videntes.
A música é arte, e a arte não pode ser compreendida senão na apreciação de si mesma, sem subterfúgios e sem atenuantes, sem prevenções e sentimentalismos. Sílvio Romero, lendo os versos de Cruz e Souza, e atribuindo ao poeta negro apenas uma verbosidade retumbante, talvez fosse mais equânime do que depois, exaltando o seu estro, ao saber que se tratava de um rapaz paupérrimo, com mulher e filhos, tuberculoso e metido numa repartição da Central do Brasil. As condições morais do homem influíram no modo de conceituar a poesia. Agiu o coração generoso desmentindo o que o cérebro esclarecido havia articulado.
Vamos ensinar as meninas a fazer crochê, ou coar café, preparando-as para o matrimônio que o território nacional ainda está muito despovoado...

LYCIDIO PAES

Jornal "O Repórter", Uberlândia, terça-feira, 25 de agosto de 1959.

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