FÉ
Crê no amor, minha filha.
Eu também era como tu quando tinha a tua
idade: desconfiava de tudo, não acreditava em nada, era a incredulidade em
pessoa.
Então em se falando de homens...
Hoje estou completamente mudada,
arrependida, com os ensinamentos que recebi do mundo e com os ditames de minha
própria consciência discernida e já madura.
Não quero que sigas a trilha que eu
palmilhei por falta de um conselho seguro e ponderado.
Crê no amor. Si soubesses quanto sofri outrora,
mercê dessa mania de descrer! A princípio julgava-me feliz, e todos assim me
diziam que eu o era.
Que não havia nada melhor do que a gente
não se deixar levar pelas palavras falazes dos outros. Não é assim tanto.
O mundo não é tão mau como o anunciam os
pessimistas. Crê no amor, como hoje eu creio. Não vês aquele casal de pombos
brancos que arrulham, meigos e gárrulos, cheios de alegria e ternura, sobre o
telhado de nossa casa? E não reparaste ainda como as borboletas, sejam
pequeninas como pétalas que voam, sejam grandes, de azas espalmadas, semelhando
restos de penas de pavão soltos ao ar, andam sempre aos pares, nos seus adejos
doidejantes, por sobre a verdura dos prados? Porque essa duplicidade de seres?
Porque um foi feito para o outro e é dele o complemento: porque amam. É tudo
assim na natureza. E ai delia se assim não fosse! ... Ouves aquela cigarra que
estridula chirria por entre a ramada do tamarindeiro, mal o sol vai procurando
o seu túmulo de fogo no extremo do céu?
Pois procura com cuidado, cata, busca
com cautela entre os folíolos virentes do arvoredo, de permeio com os cachos de
frutos pardacentos, que hás de encontrar uma outra cigarra quieta, calada,
muda, prestando ouvidos àquela que a deleita e a seduz com seu cântico de amor.
Ai quem não crê, minha filha, no amor!
... Pobre do que vive só, como os ascetas nos cenóbios... Sabes o que é alma de
um solitário? E’ um túmulo, onde jaz a múmia de um sonho. Si esse ente se fez
solitário, porque a morte roubou a criatura que completava a sua vida, si ele
um dia creu no amor, a sua alma é um túmulo, de fato, mas sobre ele vicejam
saudades e lembranças: é urna campa coberta de flores. Mas si ele se tornou
ermitão, porque jamais penetrou em seus íntimos sacrários esse princípio misterioso
que é a essência da vida... pobre alma! triste tumba: é uma cova rasa, onde nem
as gramíneas vegetam, que só os lichens secos da descrença revestem...
Pois si até as plantas fixas ao solo se
amam estremecidamente! Já li um livro, escrito em uma linguagem de todo o rigor
cientifico, em que era narrado o fato de uma plantinha aquática — foge-me da
memória o seu nome arrevesado, — a qual vive no fundo da água mansa nos lagos,
presa ao limo musgoso da vasa. Pois bem: na primavera, quando a natureza em
peso celebra e seu universal himeneu, a plantinha dá flores, estas se elevam à
superfície das aguas, e aí, longe da planta mãe, à face do Sol, que as instiga
para o concerto da boda, incitadas pelo balanço das aguas que as impelem umas
para outras, elas — duas a duas, sempre aos pares — se tocam e osculam como
namorados furtivos, e após esse ligeiro beijo criador, que garante a sua
existência na Terra, as florinhas retraem-se imediatamente, voltando ao fundo
do lago e indo talvez contar ao tronco materno, o crime necessário e
providencial, que o Sol e as aguas, que a mesma Natureza lhes tinham feito
cometer...
Ai de quem não crê... ai de quem não ama!
... O descrente é como o mocho: vive em uma eterna noite, só enxerga no escuro.
A crença é um sol que ofusca e cega o incréu, e sob cujo influxo este não
compreende o que vê.
Ao contrário, quão feliz é quem crê!
Quantos privilégios para quem ama! ... Ama, minha filha, derrama sobre tua alma
o cálix todo desse licor embriagador! Algema-te nessa cadeia: nunca conseguirás
ser mais livre do que ficarás então. Deixa-te crucificar pela paixão, crê na
grandeza de teu feito, e terás amais franca liberdade nessa prisão... serás o
símbolo vivo da Fé. E então, a cada passo teu, semearás pelos campos, com a
marca de tuas palmas, os lírios que hão de florir ao teu regresso e as
laranjeiras que hão de te dar as flores para engrinaldares a fronte no dia de
teus esponsais...E então, quando acordares, ouvirás sempre a música dos
pássaros, que te ensinarão a modular cânticos de ternura e melodias de amor...
E então, as serpes da maldade e os abutres da tristeza fugirão de ti, como os
noitibós soturnos arrancam para suas furnas escuras a um raio de luz... E—
excelsa, sobre-humana, divina quase — tu aparecerás em meio à grita do povo que
se estorce na agonia convulsa da descrença e da maldade, serena, calma e
risonha, cercada de uma aureola de luz.
Crê no amor, minha filha, e serás feliz!
P. Florizel
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