quarta-feira, 29 de agosto de 2012

POETA QUE O TEMPO ESQUECEU... (III)

O "POETA MARGARIDA"

O “Poeta Margarida” ou Manoel de Almeida Coelho Margarida, nasceu na vila e freguesia de Macieira de Cambra, no distrito de Aveiro, em Portugal, aos 07 de julho de 1829, filho de uma família paupérrima que residia perto de Val-Galhardo, onde seu pai ganhava 4 vinténs, como serviçal, por dia e sua mãe, uma tecedeira, ganhava 2. (1)
Manoel, com pouco tempo de vida, ficou órfão, e com isso "começou a carecer da proteção de estranhos de quem vinha o pão que o alimentou até a morte."

"Aos dez anos de idade ele pastoreava em companhia do seu único amigo, o fiel Leandro, cão que tanto idolatrava, por esta ocasião perdia para sempre o seu preceptor pois falecera o seu mestre, de quem recebera as primeiras noções de leitura."
Desde essa idade, forçado a trabalhar pela mais extrema necessidade, não tendo como nem com o que garantir seus estudos, privado até mesmo dos domingos, pois ficara completamente preso aos compromissos de criadagem, cuidando de burros, sentia na pele as agruras da vida e "...assim começava a libar o cálice dos sofrimentos!"

Sobre esses primeiros anos de vida e sobre sua progenitora, uma "honrada e trabalhadeira aldeã", o poeta diria o seguinte:

"Nas carquejas e cascalhos
Essa mártir deu-me a luz

Lá vi a primeira vez
Das estrelas os fulgores,
Tendo por cama carquejas,
Pinheiros por cobertores."

Todavia a sede de instrução não lhe fora furtada e assim foi que ele "aquele gênio furtava, às vezes, o tempo para estudar na estrebaria enquanto não vinham os burros, servindo-se de um tição.".

"E quando não vinham os burros
Sempre tinha por costume
Ler, soprando aos tições,
A queimar a testa ao lume." (13)

Ainda sobre sua infância e juventude Carlos Borja Peixoto diz o seguinte:
...ao contar cinco anos foi pastorear rebanhos: aos sete revelou-se nele uma vontade extraordinária de aprender a ler, porem não so as posses de seu pai não o permitiam, como também no lugar em que morava não havia pessoas aptas para, ensinar-lhe, á exceção de um cirurgião, a quem chamavam de sábio.
A sua vontade heroica procurou vencer todos esses sérios embaraços.
Conseguindo ganhar um livro, à noite pedia a seu pai algumas lições, o qual, fatigado do seu trabalho diurno, punha-se a dormir, e também era quase analfabeto.
Não obstante todas essas dificuldades, todas essas insuperáveis barreiras, Margarida não desanimava. Aos domingos dava-lhe seu pai duas horas de descanso, tempo que aproveitava estudando
Ao ver passar na rua qualquer pessoa, para ela se dirigia; pedindo que lhe ensinasse este ou aquele nome que ler não sabia.
Este procedimento levou o povo daquele lugar a dizer que estava ficando idiota.
Foi vencendo obstáculos de tal ordem, que hoje lê, posto que mal.
Reconhecendo-se poeta, pela grande facilidade com que punha em versos os seus pensamentos, com que glosava o que lhe dava, que dar à luz da publicidade as poesias que então havia feitos. Mas de que modo, se escrever não sabia? Ainda esta dificuldade não constituiu barreira para tão extraordinária vontade.
Arranca a pena de um pato e, preparando-a faz na areia um alfabeto especial, de que até hoje se serve.” (2)
Manoel veio para o Brasil e, depois de um curto período de permanência, retornou à pátria, "levando consigo a colossal fortuna de setecentos e vinte réis!..." ... "Nem a distancia que o separava da família, nem esse rosário de sofrimentos de que tantos podem dar testemunho, nada minorou a antipatia com que o recebeu um único parente que lhe restava".


"Eu lhe perdoo as calunias
Que contra mim se levantou..." (13)

De novo ao Brasil, não se tem notícias claras da data, as primeiras referências dão-no como morador em uma casa simples e humilde com mulher e quatro filhos, onde atuava como um lavrador, trabalhador de enxada ou cavouqueiro, de onde tirava o sustento familiar ganhando assim “o pão para si e para a sua família ao sol, enxugando o suor do pesado trabalho, misturado às lágrimas do infortúnio que o persegue”, como narra o editorialista do jornal "O Arauto de Minas", quando o visitara em sua casa e prossegue dizendo: “...Ali cercado dos filhos e da esposa sente arfar-lhe o peito a falta de recursos; e tomando da lira inculta, disfarça em cantigas as dores que lhe atormentam a alma."
Manoel, carecia do rudimento mesmo das letras, era inculto para a leitura e escrita, sabia apenas assinar o nome, “contudo em caracteres, que lhe são unicamente inteligíveis, escreve suas inspirações, que outros passam a limpo, lidas pelo próprio autor.”
Como os refazes da vida encontram, por seu lado, um oponente à altura, Manoel deparou-se com uma mão benfazeja que, a par de sua produção rimada “...achou-lhe tanto cunho de naturalidade e tão ricas de pensamentos bons, em tão variada rima, que aconselhou ao agreste poeta para dá-las ao prelo.” Como resultado o passo seguinte foi igualmente providenciado pelo destino e Manoel encontrou quem arcasse com a edição de seu “Flores Incultas”, editada pela Typographia Economica, em 1879.
A partir daí, ele o próprio autor se incumbiu de vender de porta-a-porta a sua obra editada, pelas imediações, adjacências e arredores. (3)
E assim é que vamos encontrá-lo em outubro de 1881, já com um novo volume de suas “Flores Incultas”, em São João Del Rei, participando dos festejos de uma inauguração religiosa e para retribuir a visita que o periodista de “O Arauto de Minas” havia feito a ele em sua asa em Mar de Espanha.
Manoel já havia conquistado notoriedade na região como “...improvisador, repentista admirável e pela produção de poesias, que contem belos conceitos e rima fácil...” (4)
Ainda sobre a sua versatilidade e produção farta diria um periodista da época: "O poeta margarida parece ser uma dessas organizações eminentemente poéticas que fazem versos como os passarinhos cantam.
Pena que, por escassez de recursos, que não faltam a outros que não os aproveitam, deixasse de ser cultivado tão notável talento.

Vivendo por esta época em Mar de Espanha, Manoel estava viúvo, (pela segunda vez) e era pai de quatro filhos, sendo três homens, os quais viviam em casa do Sr Marcelino José da Costa, fazendeiro no Município de Mar de Espanha, e uma menina que vivia na casa de padrinhos, também em Mar de Espanha.
No início de 1885 ele vaivai para o Rio de Janeiro, onde permanece por algum tempo, vendendo seus livros, visitando jornais e participando da vida social, um destes exemplos foi a sua participação em um evento da entrega da venera da Ordem ao comendador Alves Ribeiro (12). Depois de algum tempo, ele deixa o Rio e segue para Laguna, em Santa Catarina, onde havia ido na intenção de visitar um dos filhos e de lá ele parte para a Vila do Tubarão, no mesmo estado. Por esta época ele edita o quarto volume de suas "Glosas". (5) Já no mês de setembro do mesmo ano de 1885, Manoel vai para Caxambu, sul de Minas, na intenção de buscar cuidados médicos para a sua saúde “como o mostra seu aspecto”, ao mesmo tempo em que fazia o seu trabalho de vendedor ambulante de seus próprios livros. (6)

Carlos Borja Peixoto ainda emenda: “O que vemos na batalha porfiosa que teve este homem senão as trovas vencendo as trevas; rochedos tocando-se e do choque resultando a luz.
Se admiração me tem causado as poesias de notáveis poetas que tenho lido, pasmo me tem causado as de Margarida.
Não me admira que o cristal brilhe com a luz do sol, pasmo de vê-lo mostrar-se luminoso mesmo nas trevas. (Mar d'Hespauha, 14 de julho de 1882. Carlos Borja Peixoto). (7)
Assim é que em Caxambu, ao mesmo tempo em que cuidava de sua saúde, ele era cortejado pelos apreciadores da boa rima e quando, depois de aproximadamente um mês, deixa a cidade, o periodista escreve: “Retirou-se na semana passada o poeta que tão apreciado foi aqui dos aquáticos, podendo-se dizer que foi o leão da moda durante tempo que esteve neste lugar"
"...Ao poeta desejamos melhoras em sua saúde e boa venda de livros." (8)
Não passou-se muito todavia e, aos 26 de junho de 1886, no distrito de Rio Pardo da Leopoldina (Argirita), "para onde se retirara em busca de melhoras para a sua saúde", (11) aos 54 anos, morre o “Poeta Margarida”, provavelmente vitimado das mesmas enfermidades que o vinham acoanhando e que o haviam, ano anterior, levado a Caxambu para tratamentos médicos.
De sua obra intitulada “Flores Incultas” ficaram quatro volumes. Fora ele, embora inculto e analfabeto, o autor, o coeditor, propagador e o administrador de sua obra, já que o próprio as vendia de cidade em cidade.
O articulista de “O Arauto de Minas”, emenda; "Era admirável a facilidade com que encontrava rimas e a habilidade com que as acomodava em sua singelas composições.
A décima foi o gênero de verso com que mais se familiarizou, estava em seu elemento que lhe davam uma quadrinha para glosar.
Se muita gente que conversa com as musas ganhasse o talento de Margarida que figura não faria?
Mas quase sempre acontece que quando existe aptidão falta a ilustração, ou melhor ainda - quando Deus dá o fubá, o diabo leva o saco. (9)
Dada a nobreza de caráter, simplicidade, honradez e cordialidade que a todos cativava, "era uma criança grande", o jornal “O Pharol” de Juiz de Fora, por ocasião de sua morte, dedica-lhe um epitáfio impresso nas páginas daquele grandioso hebdomadário: "Respeitemo-lo, e guardemos o seu corpo, postando de guarda à beira do túmulo a Honestidade e a Honra!" (13)

A posteridade conferiria ao poeta um caráter universalista e assim é que a Camilo Castelo Branco, em seu "Dispersos", volume 5, página 543, dedicando-lhe um longo e elaborado texto, diz: "É assim que as literaturas se consubstancializam-se, e as fronteiras das raças e das índoles se derrubam de modo que para o talento sejam abolidas as pautas das alfândegas internacionais. A última copla do snr. Margarida tem malícias de Byron e e de Musset:

Mas vossa excelência bebeu
Em tamanha profusão
Que orgulhoso entendeu
Insultar uma nação." "..."

Augustus Gribel, o colunista mardespanhense, no ano de 1955, assim o descreve:
"O POETA MARGARIDA... Em outros tempos, fim do século passado e inicio deste, no áureo período de nossa terra, que foi chamado "época dos Agostinhos", porque lembrava o tempo dos chefes eminentes que comandaram a política e a administração mardespanhenses, com repercussão em todo o Estado, naquele tempo, vivia por aqui o poeta Manoel Margarida.
Era uma alma de artista, esse Manoel Margarida, errante à moda dos menestréis da antiguidade, talvez, até mesmo, um personagem semelhante Àqueles poetas que outrora também povoaram as ruas de Paris, ao tempo do "Rei-Vagabundo" coroado e reinante na cloaca dos esgotos da cidade imortal e duas vezes milenária.

*-*-*

Manoel Margarida era, segundo sei, um tipo de "Mané-Casinha", biscateiro, carregador de água em quintos, para as casas da cidade que ainda não possuíam os serviços de água atuais. Andava ele pelas nossas ruas, daqui para ali e acolá, fazendo mandados e dedilhando versos improvisados e repentistas que lhe floriam a pobreza honrada. Os que lhe conheceram falavam e falam ainda alguns contemporâneos dele, com verdadeira admiração ao valor inato e à inspiração poética prodigiosa que lhe aflorava cristalina como a água da fonte.
Um dia, no sepultamento de dª. Minervina, veneranda esposa do Dr. Infante Vieira, isto é, a 13 de Março de 1882, lá no cemitério velho, na rua das Flores, ei-lo a declamar de improviso:

"Duas pessoas distintas
Em posição e bondade
Como por fatalidade
Com a morte foram extintas.

É justo mortais que sintas
Porque Deus tudo assim destina
Não tem força a medicina
Contra o império da morte
Partilharão igual sorte
Eduardo e Minervina.

Altos desígnios de Deus
Que ninguém os compreende
A alma justa desprende
Da matéria e voa ao Céu
Apresentando o troféu
A majestade divina
Caridade peregrina
Companheira de Jesus
Gozai pois, perpetua luz
Eduardo e Minervina."

Um dia, Manoel Margarida desapareceu. E ninguém ouviu depois notícias suas. Desaparecera, como que por encanto, o poeta das ruas, o "Rei-Vagabundo", alegre menestrel do velho Mar de Espanha... - A. Gr."

Mais à frente, outra homenagem, a Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais - AMULMIG, fundada em 8 de abril de 1963 pelo escritor Alfredo Marques Vianna de Góes (1908-1992), dedicou-lhe o patronato da cadeira de nº 97, ocupada atualmente pela poeta, psicóloga, ensaísta e professora universitária, Lacyr Annunciata Schettino, também ela uma cidadã mardespanhense. (10)
Terminando, parece que este é o mal dos (bons) poetas alcançar com a morte a notoriedade da vida.

Fontes consultadas:
1 - Jornal “O Baependyano”, caxambu, 22 de junho de 1886 ANNO IX N.428 pg 2;
2 - Jornal “Liberal Miberal”, ANNO V, n. 72, pg 2 - Ouro Preto, 22 de julho de 1882;
3 - Jornal “O Arauto de Minas”, ANNO VI, São João Del-rei, 06 de maio de 1882;
4 - Jornal “O Arauto de Minas”, 3 de novembro de 1881;
5 - Jornal "Regeneração", Santa Catarina ANNO XVII, pg. 142 - Domingo 5 de julho de 1885;
6 - Jornal “O Baependyano”, Caxambu, 6 de setembro de 1885, ANNO IX, N. 381, pag 5;
7 - Jornal “Liberal Miberal”, ANNO V, n. 72, pg 2 Ouro Preto, 22 de julho de 1882;
8 - Jornal “O Baependyano”, Caxambu 25 outubro de 1885 ANNO IX, n. 389 pag 4 e 5;
9 - Jornal “O Arauto de Minas”, ANNO X, São João Del Rei 26 de junho de 1886 n. 12 - pag 2;
10 - COELHO, Nelly Novaes. "Dicionário crítico de escritoras brasileira: 1711-2001, pag 319;
11 - Jornal "Diário de Notícias", ANNO II, N. 373 - Rio de Janeiro, quarta-feira, 16 de junho de 1886;
12 - Jornal "O Pais" - Rio de Janeiro, terça-feira, 17 de fevereiro de 1885;
13 - O Pharol - Juiz de fora - quarta 16 2 1886.


Notas:
- Macieira de Cambra e Valgalhardo são vilas portuguesa do concelho de Vale de Cambra. O Vale de Cambra é uma cidade portuguesa situada no Distrito de Aveiro. Pertence à Grande Área Metropolitana do Porto.

1 comentários:

Afonso Guerra-Baião disse...

Maravilhosa matéria que resgata a memória de um gênio das letras, cuja história eu não conhecia.

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