quinta-feira, 9 de agosto de 2012


 SURGIU DA SEPULTURA

Doze horas da noite soavam no relógio da torre de Sã Francisco saltou no estribo de um bonde do Caju em sua passagem pelo Campo Sant'Anna.
Onde iria a essa hora? Interrogaram-se os amigos que acabava de deixar sem uma explicação plausível.
Raul era espírita e daí tiraram a conclusão, que iria fazer mais uma visita aos cemitérios do Caju, onde acostumara a contemplar o silencio dos mortos em suas evocações dirigidas à pluralidade dos espíritos, no empenho de ser vidente e ouvinte.
Raul, sentando-se no primeiro banco fechou os olhos para melhor fantasiar na vista de imaginação a imagem de um ente querido que amava pela primeira vez havia três dias.
O bond vencia a viagem e daí a meia hora despertava Raul do êxtase em que vinha a sua alma, na praia do Caju, graças às exalações insuportáveis do marisco e matérias fecais em decomposição, que aí, infelizmente, permanecem, não sei se para obsequiar os habitantes do reduto, se para gloria administrativa.
O nosso homem, apeou-se febril, seguiu a travessa da Saudade, porém, não levou cinco minutos, estacou diante de um soberbo chalé, que silencioso se erguia entre frondosas mangueiras e gigantescas palmeiras, rodeando de um jardim artístico, exprimindo a ciência botânica e gosto aprimorado na combinação de flores e arbustos.
O coração palpitava-lhe de tal maneira, que parecia-lhe ter o peito pequeno e fraco para conter suas agitadas palpitações. Sentindo-se mal apoiou-se contra o gradil de ferro que resguardava a casa de sua amada Zeneide, aquela mesma que no passeio publico, havia três dias a tinha visto em companhia de sua família o que lhe havia correspondido a esse poder magnético que fala com os olhos e responde com a alma, afirmativa ou negativamente. Lembrava também naquele momento, que aquela conversa de olhos, foi feita entre os sons das notas agudas e ásperas de um tango espanhol, denominado relludo, executado pela banda de música alemã,
Oh! sim, é este o seu delicado ninho, disse Raul, e tirando do bolso um perfumoso cartão de visita mignon que recebera no [?] do passeio, em sua saída num momento oportuno, que um apertão de povo lhes ofereceu, certificou do numero e da rua, ao clarão da lua, que já tombava para o ocidente. Oh! sim, é este o seu delicado ninho, repetiu. A esta frase mental respondeu um enorme cachorro, que se atirou à grade, latindo desesperadamente.
Raul, reconhecendo a imprudência, retirou-se levando em seu cérebro um turbilhão de conjecturas, lutando umas com as outras. Porém não ouvindo mais os latidos do cão, resolveu voltar e retomar o posto perdido, embora do lado oposto. Queria embriagar-se naquele ambiente perfumado pelas múltiplas flores que embalsamavam Zeneide seu ente querido; queria dizer mais um adeus àquele vergel de encantos de sua alma e de sua vida. Mas, pressentido de novo pelo guarda leal, retrocedeu e foi sentar-se sobre a muralha que resguarda a rua do mar, à espera do bond que o levasse à cidade. Dez minutos decorreram em meditação profunda sem sinal do bond, sensibilizado pelas vagas do mar que batiam na praia e que de vem em quando algumas gotas, emigrando das ondas espumantes da preamar caiam-lhe sobre o corpo em salpicos, como que aprovando a sua meditação.
Os salpicos não lhe causavam abalo, permanecia imóvel, comparando a vida com a morte; a alegria com a tristeza, os prazeres com os desgostos e o ambiente perfumoso com o ambiente corrupto.
Ali mesmo, tão perto, cinco minutos andando, existia a comparação dos ambientes.
E tudo é assim, dizia Raul, pois bem, os dois ambientes tão diferentes um do outro estão quase que unidos, como unidos estão os prazeres aos desgostos; como a alegria com a tristeza; como a vida com a morte e como o dia à noite. Sim o espaço que se interpõe a tudo isso, é curto, curtíssimo. E de de repente levantando-se maquinalmente foi direto ao cemitério, entrando pelos fundos, vigiados por um pequeno capoeirão, muito seu conhecido, que lhe dava acesso todas as vezes que a isso se dispunha.
Muitas vezes Raul tinha aí penetrado na intenção de conviver com os mortos, segundo o espiritismo, Percorria os túmulos, ricos e pobres e a vala comum, onde se enterram os desfavorecidos da sorte, aos trezentos e quatrocentos, até encher-se, com os mortos, conduzidos pela carrocinha da Santa Casa de Misericórdia, mas, nunca tinha visto coisa alguma; descrente de ver e ouvir falar as almas de tantos mortos ali debaixo da terra, percorria o campo santo, com ideias tendentes ao ateísmo, qualificando-se a si mesmo de matéria bruta e nada mais.
A primeira coisa que fez Raul, uma vez dentro do cemitério, foi dirigir-se à enorme vala comum, aberta, faltando 2 a 3 metros para encher-se de carne humana; e, ao ao aproximar-se, oh! surpresa! caso estranho! reservado para Raul!
Que milagre é este? dizia Raul, Deus ouviu minhas evocações? Os mortos levantaram-se para receber-me esta noite? Se isto acontecer será o maior prazer que desejo na vida.
Enquanto assim exclamava, procurava com sua vista perscrutadora, conhecer, que vulto era o que na fundo da vala divisava, querendo galgar as paredes que o estreitavam.
Feita a observação que o caso requeria, Raul, evocando um espírito perfeito, resolveu interrogar o vulto.
A lua estava sumindo-se no seu fadário, como que, não querendo testemunhar o desenlace de um fato original; as estrelas, salientes e brilhantes aclaravam a abóbada celeste, de maneira a ver-se o azul diáfano; a brisa, um tanto desagradável pelo mau cheiro da praia, trazia em seu seio os murmúrios das ondas que de desmoronavam altaneiras e provocadoras contra as muralhas; ca ciprestes erguidos em altitude de respeito, como vigias, entre os túmulos, balançavam-se ao sopro da brisa, com indolência, ao compasso do monótono canto das corujas em seus ramos resinosos agasalhadas.
O silêncio do sepulcro, é pavoroso e ninguém tenta violá-lo.
Raul, com voz firme e inabalável, pergunta:
- Quem sois? responde, em nome de Deus.
- Dai-me vossa mão, ajudai a tirar-me daqui, respondeu o vulto.
A este pedido, Raul, sem vacilar, aproximando-se da melhor maneira da vala, estendeu-lhe a mão e a mão grossa e pesada do vulto, segurando-se, esforçou-se em subir, esforçando-se também, Raul, em arrancá-lo para fora, porém, desbarrancando o lugar em que se apoiara, caiu, e foi juntar-se ao espectro, no fundo da cova, a qual estava até àquela altura alicerçada com muitas dezenas de cadáveres.
Aí, Raul, frente a frente, com o fantasma, não perdeu um momento de sangue frio e reinquirindo-o teve como resposta:
- Não se assuste meu senhor; eu ainda sou deste mundo, levantei-me a pouco desta cama fria, onde vim parar não sei como. Acho que estou sonhando, pois eu acordei no meio de homens sobre mim ao que parece.
A posição de Raul, não podia ser mais crítica, entretanto, pelo prazer que tinha em ser vidente e conversar com os espíritos teve ânimo intemerato, na persuasão de se achar na frente de um espírito galhofeiro, por isso, apalpando o corpo do espectro que tinha a seu lado, como São Tomé, ver para crer, verificou ser um homem, de carne e osso, e entre eles estabeleceu-se o seguinte diálogo:
- Que diabo, V. veio fazer aqui?
- Não sei nem onde estou, respondeu o homem deitado.
- Estas na Vala Comum do cemitério de São Francisco Xavier, no Cajú, e eu também.
- Virgem Nossa Senhora, vamos, vamos meu amigo salvador, vamos sair daqui, sinto desfalecer-me estou tão fraco, tinha tanto peso sobre mim quando acordei... e tenho a friagem dos mortos!
Raul, fazendo um violento esforço, serviu de escada, e... surgiu da sepultura!... o pobre homem que tinha sido enterrado vivo em estado cataléptico.
Raul, o [?] incomparável, ajeitando-se entre as paredes que o [?] num ambiente de [?], também... surgiu da sepultura!
Dando o braço ao desconhecido, saiu do cemitério, chegando ao largo Santo do Cristo dos Milagres, aí um kiosque aberto, servia café aos mendigos ou aos viajantes da madrugada. Raul, fez beber cognac com café ao seu companheiro afim de reanimá-lo e, em seguida, tomando o bond da manhã, pois eram 3 horas, dirigiram-se para a cidade.
- Como se chama? perguntou Raul.
- Manoel, meu caro senhor.
- Onde mora?
- Num quarto de uma estalagem da rua do Alcântara. Moro com um meu patrício chamado José.
- Então abrir-lhe-á a porta não é?
- Sim senhor, viemos ambos de Portugal sempre temos morado juntos, trabalhando em sociedade no ofício de carregadores.
Chegando o bond, à esquina da rua do Bom Jardim, apearam-se, indo direto a estalagem e batendo à porta do seu quarto onde ainda dormia o seu José, este acordando fez a pergunta que todos fazem nestas condições:
- Quem está batendo?
- Sou eu, seu José, Abra a porta.
José, que tinha reconhecido a voz de seu velho amigo, companheiro e patrício não podia acreditar fosse ele mesmo, pois viu-o morrer e viu a carrocinha da Santa Casa, carregando-o para o cemitério, o vacilante perguntou:
- Quem é você?
- Manoel, teu companheiro, José.
A confusão que se estabeleceu no cérebro do seu José, torna-se inexplicável, o leitor avaliará a situação do pobre homem.
- Pois, V. não morreu Manoel? vai embora, se precisas de missas eu as mandarei dizer por tua alma, deixa-me em paz, em nome de Deus.
- Eu não morri José abra a porta, que eu devo a vida a um senhor que está aqui comigo.
- Não abro a porta vai-te alma penada, que eu vou dizer as missas que precisas.
Como Manoel insistisse e Raul também interviesse em abrir a porta, o nosso infeliz seu José, botou a boca no mundo, gritando por socorro, até que, uns italianos decididos, saíram para fora e prenderam como gatunos os dois personagens do cemitério.
Porém, explicações convencedoras fizeram com que se tornasse tudo em seu verdadeiro sentido.
Nessa época, a febre amarela lavrava com intensidade no Rio de Janeiro, de um modo assustador. Só essa estalagem, tinha dado no dia anterior, nove vítimas.
Manoel, sendo acometido de uma espécie de congestão cerebral e parecendo morto, o médico sem outro exame a não ser o da convicção que tinha de ser a febre amarela, mesmo pela confusão natural dos doentes desta estalagem, na melhor boa fé, aproveitando a carrocinha da Santa Casa, que ia buscar os dois últimos cadáveres à tardinha, despachou o nosso Manoel para a Vala Comum.
A felicidade do Manoel fantasma, como o apelidaram depois, foi a carrocinha não levar mais cadáveres esse dia, e daí a felicidade de desembaraçar-se do meio de seus dois companheiros de viagem a da pouca terra que os cobria, quando veio de novo ao mundo.
O seu José, ainda hoje tem medo pelo pavor que lhe causa o seu Manoel fantasma.
Diz ele: cheira a defunto.

Março - 1898
F. S. Teixeira

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