SURGIU DA SEPULTURA
Doze horas da noite soavam no relógio da torre de Sã Francisco
saltou no estribo de um bonde do Caju em sua passagem pelo Campo
Sant'Anna.
Onde iria a essa hora? Interrogaram-se os amigos que acabava de
deixar sem uma explicação plausível.
Raul era espírita e daí tiraram a conclusão, que iria fazer mais
uma visita aos cemitérios do Caju, onde acostumara a contemplar o
silencio dos mortos em suas evocações dirigidas à pluralidade dos
espíritos, no empenho de ser vidente e ouvinte.
Raul, sentando-se no primeiro banco fechou os olhos para melhor
fantasiar na vista de imaginação a imagem de um ente querido que
amava pela primeira vez havia três dias.
O bond vencia a viagem e daí a meia hora despertava Raul do
êxtase em que vinha a sua alma, na praia do Caju, graças às
exalações insuportáveis do marisco e matérias fecais em
decomposição, que aí, infelizmente, permanecem, não sei se para
obsequiar os habitantes do reduto, se para gloria administrativa.
O nosso homem, apeou-se febril, seguiu a travessa da Saudade, porém,
não levou cinco minutos, estacou diante de um soberbo chalé, que
silencioso se erguia entre frondosas mangueiras e gigantescas
palmeiras, rodeando de um jardim artístico, exprimindo a ciência
botânica e gosto aprimorado na combinação de flores e arbustos.
O coração palpitava-lhe de tal maneira, que parecia-lhe ter o peito
pequeno e fraco para conter suas agitadas palpitações. Sentindo-se
mal apoiou-se contra o gradil de ferro que resguardava a casa de sua
amada Zeneide, aquela mesma que no passeio publico, havia três dias
a tinha visto em companhia de sua família o que lhe havia
correspondido a esse poder magnético que fala com os olhos e
responde com a alma, afirmativa ou negativamente. Lembrava também
naquele momento, que aquela conversa de olhos, foi feita entre os
sons das notas agudas e ásperas de um tango espanhol, denominado
relludo, executado pela banda de música alemã,
Oh! sim, é este o seu delicado ninho, disse Raul, e tirando do bolso
um perfumoso cartão de visita mignon que recebera no [?] do
passeio, em sua saída num momento oportuno, que um apertão de povo
lhes ofereceu, certificou do numero e da rua, ao clarão da lua, que
já tombava para o ocidente. Oh! sim, é este o seu delicado ninho,
repetiu. A esta frase mental respondeu um enorme cachorro, que se
atirou à grade, latindo desesperadamente.
Raul, reconhecendo a imprudência, retirou-se levando em seu cérebro
um turbilhão de conjecturas, lutando umas com as outras. Porém não
ouvindo mais os latidos do cão, resolveu voltar e retomar o posto
perdido, embora do lado oposto. Queria embriagar-se naquele ambiente
perfumado pelas múltiplas flores que embalsamavam Zeneide seu ente
querido; queria dizer mais um adeus àquele vergel de encantos de sua
alma e de sua vida. Mas, pressentido de novo pelo guarda leal,
retrocedeu e foi sentar-se sobre a muralha que resguarda a rua do
mar, à espera do bond que o levasse à cidade. Dez minutos
decorreram em meditação profunda sem sinal do bond,
sensibilizado pelas vagas do mar que batiam na praia e que de vem em
quando algumas gotas, emigrando das ondas espumantes da preamar
caiam-lhe sobre o corpo em salpicos, como que aprovando a sua
meditação.
Os salpicos não lhe causavam abalo, permanecia imóvel, comparando a
vida com a morte; a alegria com a tristeza, os prazeres com os
desgostos e o ambiente perfumoso com o ambiente corrupto.
Ali mesmo, tão perto, cinco minutos andando, existia a comparação
dos ambientes.
E tudo é assim, dizia Raul, pois bem, os dois ambientes tão
diferentes um do outro estão quase que unidos, como unidos estão os
prazeres aos desgostos; como a alegria com a tristeza; como a vida
com a morte e como o dia à noite. Sim o espaço que se interpõe a
tudo isso, é curto, curtíssimo. E de de repente levantando-se
maquinalmente foi direto ao cemitério, entrando pelos fundos,
vigiados por um pequeno capoeirão, muito seu conhecido, que lhe dava
acesso todas as vezes que a isso se dispunha.
Muitas vezes Raul tinha aí penetrado na intenção de conviver com
os mortos, segundo o espiritismo, Percorria os túmulos, ricos e
pobres e a vala comum, onde se enterram os desfavorecidos da sorte,
aos trezentos e quatrocentos, até encher-se, com os mortos,
conduzidos pela carrocinha da Santa Casa de Misericórdia, mas, nunca
tinha visto coisa alguma; descrente de ver e ouvir falar as almas de
tantos mortos ali debaixo da terra, percorria o campo santo, com
ideias tendentes ao ateísmo, qualificando-se a si mesmo de matéria
bruta e nada mais.
A primeira coisa que fez Raul, uma vez dentro do cemitério, foi
dirigir-se à enorme vala comum, aberta, faltando 2 a 3 metros para
encher-se de carne humana; e, ao ao aproximar-se, oh! surpresa! caso
estranho! reservado para Raul!
Que milagre é este? dizia Raul, Deus ouviu minhas evocações? Os
mortos levantaram-se para receber-me esta noite? Se isto acontecer
será o maior prazer que desejo na vida.
Enquanto assim exclamava, procurava com sua vista perscrutadora,
conhecer, que vulto era o que na fundo da vala divisava, querendo
galgar as paredes que o estreitavam.
Feita a observação que o caso requeria, Raul, evocando um espírito
perfeito, resolveu interrogar o vulto.
A lua estava sumindo-se no seu fadário, como que, não querendo
testemunhar o desenlace de um fato original; as estrelas, salientes
e brilhantes aclaravam a abóbada celeste, de maneira a ver-se o
azul diáfano; a brisa, um tanto desagradável pelo mau cheiro da
praia, trazia em seu seio os murmúrios das ondas que de desmoronavam
altaneiras e provocadoras contra as muralhas; ca ciprestes erguidos
em altitude de respeito, como vigias, entre os túmulos,
balançavam-se ao sopro da brisa, com indolência, ao compasso do
monótono canto das corujas em seus ramos resinosos agasalhadas.
O silêncio do sepulcro, é pavoroso e ninguém tenta violá-lo.
Raul, com voz firme e inabalável, pergunta:
- Quem sois? responde, em nome de Deus.
- Dai-me vossa mão, ajudai a tirar-me daqui, respondeu o vulto.
A este pedido, Raul, sem vacilar, aproximando-se da melhor maneira da
vala, estendeu-lhe a mão e a mão grossa e pesada do vulto,
segurando-se, esforçou-se em subir, esforçando-se também, Raul, em
arrancá-lo para fora, porém, desbarrancando o lugar em que se
apoiara, caiu, e foi juntar-se ao espectro, no fundo da cova, a qual
estava até àquela altura alicerçada com muitas dezenas de
cadáveres.
Aí, Raul, frente a frente, com o fantasma, não perdeu um momento de
sangue frio e reinquirindo-o teve como resposta:
- Não se assuste meu senhor; eu ainda sou deste mundo, levantei-me
a pouco desta cama fria, onde vim parar não sei como. Acho que estou
sonhando, pois eu acordei no meio de homens sobre mim ao que parece.
A posição de Raul, não podia ser mais crítica, entretanto, pelo
prazer que tinha em ser vidente e conversar com os espíritos teve
ânimo intemerato, na persuasão de se achar na frente de um espírito
galhofeiro, por isso, apalpando o corpo do espectro que tinha a seu
lado, como São Tomé, ver para crer, verificou ser um homem, de
carne e osso, e entre eles estabeleceu-se o seguinte diálogo:
- Que diabo, V. veio fazer aqui?
- Não sei nem onde estou, respondeu o homem deitado.
- Estas na Vala Comum do cemitério de São Francisco Xavier, no
Cajú, e eu também.
- Virgem Nossa Senhora, vamos, vamos meu amigo salvador, vamos sair
daqui, sinto desfalecer-me estou tão fraco, tinha tanto peso sobre
mim quando acordei... e tenho a friagem dos mortos!
Raul, fazendo um violento esforço, serviu de escada, e... surgiu da
sepultura!... o pobre homem que tinha sido enterrado vivo em estado
cataléptico.
Raul, o [?] incomparável, ajeitando-se entre as paredes que o [?]
num ambiente de [?], também... surgiu da sepultura!
Dando o braço ao desconhecido,
saiu do cemitério, chegando ao largo Santo do Cristo dos Milagres,
aí um kiosque aberto, servia café aos mendigos ou aos
viajantes da madrugada. Raul, fez beber cognac com café ao
seu companheiro afim de reanimá-lo e, em seguida, tomando o bond
da manhã, pois eram 3 horas, dirigiram-se para a cidade.
- Como se chama? perguntou Raul.
- Manoel, meu caro senhor.
- Onde mora?
- Num quarto de uma estalagem da rua do Alcântara. Moro com um meu
patrício chamado José.
- Então abrir-lhe-á a porta não é?
- Sim senhor, viemos ambos de Portugal sempre temos morado juntos,
trabalhando em sociedade no ofício de carregadores.
Chegando o bond, à esquina da rua do Bom Jardim, apearam-se,
indo direto a estalagem e batendo à porta do seu quarto onde ainda
dormia o seu José, este acordando fez a pergunta que todos fazem
nestas condições:
- Quem está batendo?
- Sou eu, seu José, Abra a porta.
José, que tinha reconhecido a voz de seu velho amigo, companheiro e
patrício não podia acreditar fosse ele mesmo, pois viu-o morrer e
viu a carrocinha da Santa Casa, carregando-o para o cemitério, o
vacilante perguntou:
- Quem é você?
- Manoel, teu companheiro, José.
A confusão que se estabeleceu no cérebro do seu José, torna-se
inexplicável, o leitor avaliará a situação do pobre homem.
- Pois, V. não morreu Manoel? vai embora, se precisas de missas eu
as mandarei dizer por tua alma, deixa-me em paz, em nome de Deus.
- Eu não morri José abra a porta, que eu devo a vida a um senhor
que está aqui comigo.
- Não abro a porta vai-te alma penada, que eu vou dizer as missas
que precisas.
Como Manoel insistisse e Raul também interviesse em abrir a porta, o
nosso infeliz seu José, botou a boca no mundo, gritando por socorro,
até que, uns italianos decididos, saíram para fora e prenderam como
gatunos os dois personagens do cemitério.
Porém, explicações convencedoras fizeram com que se tornasse tudo
em seu verdadeiro sentido.
Nessa época, a febre amarela lavrava com intensidade no Rio de
Janeiro, de um modo assustador. Só essa estalagem, tinha dado no dia
anterior, nove vítimas.
Manoel, sendo acometido de uma espécie de congestão cerebral e
parecendo morto, o médico sem outro exame a não ser o da convicção
que tinha de ser a febre amarela, mesmo pela confusão natural dos
doentes desta estalagem, na melhor boa fé, aproveitando a carrocinha
da Santa Casa, que ia buscar os dois últimos cadáveres à tardinha,
despachou o nosso Manoel para a Vala Comum.
A felicidade do Manoel fantasma, como o apelidaram depois, foi a
carrocinha não levar mais cadáveres esse dia, e daí a felicidade
de desembaraçar-se do meio de seus dois companheiros de viagem a da
pouca terra que os cobria, quando veio de novo ao mundo.
O seu José, ainda hoje tem medo pelo pavor que lhe causa o seu
Manoel fantasma.
Diz ele: cheira a defunto.
Março - 1898
F. S. Teixeira
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