OS
CARROS DE BOI
Mui lisonjeira é a impressão que ha muitos dias vimos tendo do
grande movimento de carros que transitam nas nossas ruas durante o
dia inteiro, conduzindo café para as maquinas, para a estação, ou
transportando outras mercadorias das nossas importantes casas
comerciais para os diversos pontos que fazem comercio neste lugar.
Tal movimento vai mostrando que a vida agrícola do nosso município
se encontra cheia de animação, concorrendo amplamente para a
prosperidade do comercio, tanto quanto para os demais ramos da
profissão, visto que tudo depende dela, como fonte da riqueza
publica.
Esse movimento não pode deixar de produzir grande alento no espirito
do povo, sabendo-se que ali está a vida, a prosperidade e o
progresso.
No meio de tudo isso, só uma coisa nos desagrada, e uma coisa que
com a maior facilidade se pode corrigir, sem alterar o mais:
referimo-nos ao chiado importuno dos carros.
Dez, doze, e mais desses veículos, puxados pelo boi no seu passo
moroso, enfileirados, e chiando, nessa monotonia de todos conhecida,
constituem um verdadeiro martírio.
Isso, como dissemos, corrige-se facilmente.
É só os srs. carreiros, á entrada da povoação, untarem esses
carros de sabão, para não chiarem ao menos enquanto percorrem as
ruas.
Seria um grande beneficio dispensado aos doentes e ás escolas.
Ha por ai lugares que não se podem comparar com a nossa Bicas em
adiantamento material e intelectual, os quais não suportam mais a
cantiga dos carros de boi nas ruas.
O apito estridente da locomotiva passa rápido, mas o chiado de um só
carro leva 20 ou 30 minutos a nos aliviar o ouvido; e quando então
passam dez ou doze de uma só vez?
Deus permita que essa reclamação seja atendida.
N.
Texto extraído do
Jornal "Gazeta Municipal" Ano V, N.º 218
Bicas, 14 de agosto de 1921
CARROS DE BOIS
São José de Bicas é um próspero município mineiro plantado pitorescamente à margem da Leopoldina Railway. Na chamada zona da mata é mesmo a localidade mais florescente. Ponto de convergência de diversos arraiais, que ali procuram a via férrea e, por meio desta, o mundo. Bicas constitui-se a metrópole-mírim duquelas paragens, floridas de cafezais, embalsamadas de aromas agrestes.
Sobretudo, povoadas de gente acolhedora, inteligente e laboriosa.
Vezes sem conta, a serviço sagrado do ministério, estanciei por aquela boa terra e privei, num crescendo de estima e simpatia, com aquele ótimo povo, porção abençoada desse abençoado torrão que é Minas, a piedosa, a liberal.
Nas excursões que me levaram à Bicas, hospedou-me sempre, com inesquecível carinho, aquele varão duas vezes notável, pelo coração e pelo caráter: o barão de Catas Altas. Homem talhado à antiga, criatura boníssima, em cuja vida longa e acidentada jamais se rastreara um deslize, a convivência com tão venerando titular valia por um destes prazeres espirituais, cada dia mais preciosos, porque, cada dia, mais raro.
Aquele ancião, por tantos aspectos, querido e acatado, fez trasbordar por todo o município de Bicas, que ele organizou e presidiu, com multo amor e com muita. virtude, toda a bondade da sua alma, com toda a austeridade dos seus princípios. E o exemplo frutificou. Bicas é a realização eloquente e todo um ideal de magnanimidade e a cristalização explendida de todo um programa de honradez: o Barão de Catas Altas.
Invejável Terra, privilegiada gente!
Não vem aqui, a pelo, porém, fazer o panegírico de um povo e muito menos o justo elogio de uma Individualidade, muito embora o assunto me tentasse e o ensejo me sorrisse.
Já que apenas tenho em mira, nesta, cronica, bordar comentários em torno de uma resolução ora tomada pela edilidade biquense, proibindo o chiado dos carros de bois, que trafegam pelas ruas da vila, rumo da estação de trem, carregados de café, transbordantes de cereais.
Li a noticia no "Bicas-Jornal", hebdomadário do município, tendo por igual conhecimento da luta, - incruenta, mercê de Deu? - que se feriu no domínio pacifico da Imprensa entre os carreiros e a Câmara Municipal.
Esta, em considerandos vastos e eruditos, sustenta o seu ponto de vista: é contra o chiado. Os guias de carros, ao contrario, aplaudidos por muitos entusiastas conservadores, inclusive, talvez, os próprios bovinos, manifestam-se a favor da orquestra das rodas, afinada pela musica das patas. E, daí o choque de idéias, o tumulto das, opiniões. Um casus bellil...
É o conflito do progresso com o arcaísmo da civilização; com as velharias, e - porque . não dizê-lo? — do presente contra o passadismo.
É mais uma tradição que morre. E uma tradição não morre sem que um povo estremeça. A frase vai com licença do autor. que é um famoso filósofo, cujo nome. por mais que remexa a cachola, já não me lembra.
Quanto a mim, aí me fosse dado opinar, confesso, sem rebuços: estaria com os carreiros. Seria pró-chiadista. Que os manes de Candido Figueiredo e do nosso Castro Lopes me perdoem o neologismo. Sim, sou pelo chiadismo dos carros de bois. Que me desculpe a Câmara Municipal de Bicas, à cuja frente encontra-se o meu distinto amigo e mui egrégio clinico, Dr. Vicente Bianco, um administrador modelar doublé de um gentlleman acabado.
O chiado nos carros de bois tem em seu favor uma tradição de muitos séculos Remonta às Geórgicas e foi celebrado por Tácito e cantado por Virgílio.
O famoso autor dos Annais, naquele seu estilo conciso e lapidar, descrevo a marcha triunfal do exercito romano em demanda das Gálias, levando na retaguarda, currus benesonantes, abarrotados de munições bélicas e de viveres.
Nas Geórgicas o Mantuano. naquele harmonioso versejar, que lhe era dom inestimável, fala dos arados, lavrando bucolicamente as arva dulcia, e dos carros transportando, entre cantares animadores, os frutos abençoados por Ceres. E eram bois, que arrastavam carros e arados. Sim, esses mesmos bois ancestrais e beneméritos que pertencem à História e até se perdem, esbatidos, na noite dos legendas. Que venerável antiguidade!
E eles vieram através dos tempos e através das gerações, séculos em fora, até nós, ouvindo a sinfonia dos eixos, e só assim, talvez, suportando, estoicos complacentes, até, o rigor das cangas, quando não é também a crueldade das varas de ferrão.
Aquela musica é-lhes, talvez, um lenitivo. Quem duvidaria?!...
Deixemo-los, pois, com ela. É um dever de elementar humanidade com ser do mesmo passo um testemunho de gratidão, a tão úteis animais, coitados.
Por outro lado, proibir o chiado nos carros de bois é eliminar o próprio carro de bois. Uma profanação e uma falta de reconhecimento.
Carlos de Laet, o venerando mestre do jornalismo nacional, conta-nos que. estando em São João Del Rei, perguntara certa vez a um carreiro porque os carros rechinavam tanto, e se aquela música adiantava algo à marcha dos veículos.
E o homenzinho respondeu no mesmo pé: "Pois, antão, não adianta?! Isto, seu doutor, alegra os bois e adiverte o pessoal". Palavras textuais!
Ora, aí está coladíssimos vereadores de Bicas, aí está a psicologia do chiado dos carros de bois feito por quem nestes é Jubilado: um carreiro.
E feita as barbos de quem é oficialmente, Jubilado, e até "rejubilado" — Carlos de Laet.
Concluindo pois, eu vos digo: estou com os ditos carros do bois. mas com os ditos e réditos chiados dos mesmos.
Talvez, vereadores patrícios, isso vos leve à reconsideração do ato, que sancionastes, com a solenidade augusta de considerandos eruditos e fartos. (Toda uma erudição edil, [?] e ampla!)
Assim, procedendo, eu vos asseguro, lavrareis um tento: conservareis tradição tão antiga quanto respeitável e grata. E eu vos dou parabéns.
Não sereis arguidos de obscurantistas. Não. Até na metrópole, nesta Sebastianópolis, fonfonante de autos e rumorejante de aviões, há ainda carros de bois, que trafegam, madrugada alta, carregando lixo, fazendo a toillete da urbs elegantíssima. E nem por Isso o Rio deixa de ser o Rio. Ora, meus amigos, a vista do exposto, deixemos os bons dos carros com o seu chiado e mais os bons dos bois com a sua música predileta e incentivadora.
Deixemo-los em paz, sem os moscardos, porém.
Padre Assis Memoria
Texto extraído do
"Jornal do Brasil", ANO XXXVII - N 41, pg 5
Rio de Janeiro, quinta-feira 17 de fevereiro de 1927
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