Crônica Científica
Doença da civilização
1 - O MAL ERA RARO OUTRORA
O câncer, que sempre existiu como doença rara, tornou-se epidêmico, constituindo legítimo flagelo, nos últimos tempos. Hoje, encara o tipo flagrante de um mal da civilização. Parece que foi a mudança radical que o mundo sofreu, após a Grande Guerra (de 1914 a 1918), o fator mais importante na transformação de uma coisa rara, pomo eram os tumores malignos, na calamidade atual do câncer epidêmico.
Semelhante tese encontra positiva demonstração no que aconteceu na terra dos Cafres. Povo atrasado, verdadeiramente selvagem, não conhecia sequer um caso de tumores malignos, até que os ingleses estenderam o seu domínio na África do Sul, levando-lhes a civilização. Pois bem. Quando se celebrou a festa do jubileu britânico junto àquele povo, uma estatística sanitária, muito bem feita, fez certo que, então, havia entre os cafres tantos cancerosos quantos entre os Ingleses. '
2 - A MINHA PEREGRINAÇÃO CLINICA
Acredito piamente que o câncer epidêmico resulta de costumes e vícios ligados à civilização, porque - de 1908 a 1928 andei muito pelo interior do Brasil, visitando demoradamente a gente rústica ou perdida pela nossa hinterlândia, e jamais tive a ideia de que por ali houvesse casos de tumores malignos.
É verdade que se trata de uma impressão pessoal. Mas vale a pena documentá-la, como me apresso em fazer.
3 - LOCALIDADES POR MIM VISITADAS
De 1903, ano em que entrei para a Faculdade, a 1908, data de minha formatura, nunca deixei de passar as férias em lugares do interior de São Paulo e de Minas. Assim, pude conhecer bem de perto os moradores de Cruzeiro, Lavrinhas e Queluz, em São Paulo, e os de Guarará, Bicas e Mar de Espanha, em Minas.
Em 1911, passei dez meses em São José dos Botelhos, Campestre, Água Limpa de Alfenas (hoje Serrania), Conceição da Boa Vista (hoje Divisa Nova) e Cabo Verde, tendo-se-me deparado uma formidável epidemia de alastrim, no decurso da qual visitei e tratei 302 doentes em domicílio, nos arraiais e na roça.
Em 1913 e 14, residi no município, de Caxambu, clinicando largamente em Baependi, Aiuruoca, Soledade, Pouso Alto e outras localidades circunvizinhas, indo até mesmo a Carmo do Rio Verde (Silvestre Ferraz) e Ouro Fino.
Pouco tempo depois, em 1918, estava eu em Cuiabá, trabalhando na cidade, inclusive na quadra da gripe espanhola, serviços esses prestados não só antes da epidemia (quando então Inspecionei 444 casas), como na hora em que a maior rajada do flagelo colheu a população daquela capital. Mais tarde, de 1924 a 1928, residi em Rio Preto (São Paulo) granjeando enorme clínica, que se estendia a Potirendaba, Mirassol, Monte Aprazível, Nova Granada e muitas outras localidades próximas.
Pois bem. Nesses citado 20 e tantos anos de peregrinação pelos lares, vendo toda sorte de doentes, não tive um único chamado que fosse para atender a tumores malignos!
4 - CASOS RAROS E EXCEPCIONAIS
Não quero dizer — está claro, que não houvesse nessas muitas cidades e povoações, algum caso de afecções cancerosas. Mas isso era excepcional, na clinica diuturna.
O que eu via, e me chamava a atenção sob mil formas clínicas, eram principalmente, os portadores de paludismo, tuberculose; opilação, sífilis e alcoolismo crônico, além de outros, em menor número, do mal de Hansen, doença de Chagas, helmintíases diversas e males do sistema nervoso.
E só na minha demorada passagem pelo interior do País, em todo esse tempo, jamais me empolgou a curiosidade e as atenções de médico a existência dos tumores malignos, cumpre registrar também que o mesmo me aconteceu nos subúrbios e zonas rurais do Rio do Janeiro, onde, por certo, nos inícios deste século XX, o câncer devia existir, mas igualmente como coisa fora do comum nas famílias, e sempre no seu aspecto de doença esporádica. Jamais epidêmica.
5 - A ALIMENTAÇÃO DEFEITUOSA
Não deve haver a menor dúvida sobre o seguinte: nenhum fator parece mais evidente do que o da alimentação defeituosa, na gênese e na manutenção das epidemias de câncer.
Os povos em estado selvagem não conhecem semelhante mal, porque vivem respeitando as leis da natureza. E é principalmente na alimentação que o Indivíduo civilizado se desvia do que a natureza inspira e lhe ensina.
Na próxima crônica voltarei, ainda, uma vez, a bater nessa tecla, o que farei com precisão, por tratar-se de assunto que eu lecionava aos meus antigos discípulos, na Faculdade de Medicina. Nem foi outra a razão pela qual, escrevendo a tese de doutorando em 1908, a primeira frase que li se encontra, no capitulo I da obra, é esta:
— A Medicina do futuro virá da cozinha.
FLORIANO DE LEMOS
Jornal "Correio da Manhã", ANNO LXIV, N.º 22.033
Rio de Janeiro, domingo, 31 de janeiro de 1965
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