domingo, 11 de maio de 2014

O ADULADOR



O ADULADOR

I
Conheci-o na minha terra. Chamava-se Gregório, de que - é que não me lembro agora.
O Gregório tinha de seu o dia e a noite. Era o jornal noticioso da terra. Andava de casa em casa anunciando os fatos ocorridos e comentando-os ao sabor dos ouvintes. Jeitoso, todas as portas se lhe abriam de par em par. Boa prosa, maneiras cativantes, ia o  Gregório, pouco a pouco, se assenhorando dos mundões geralmente afeitos aos incensos, acabando por se aproximar depois de muito se ter curvado. Nem sei como aquela espinha pode resistir a tantos movimentos curvilíneos...
Apesar de minha pouca idade, detestava-o, chegando mesmo a lhe fazer algumas pirraças e malcriações como para não citar senão uma, a de lhe ter, uma vez, pregado, numa das abas de seu frack quando ele discutia com meu tio uma cauda de trapos de quase três metros... com mentira e tudo... em mentira, teria,  quando muito, um metro...
Pensam que ele virou bicho para comigo?
Puro engano! Duas razões de peso de quatorze arrobas cada uma, obrigaram-no a achar graça na minha peça: primeira a graudice do meu tio; segunda o plano de me fazer seu alcoviteiro... O mariola andava a arrastar a asa a uma de minhas parentas, que Deus haja no melhor lugar do céu.
Ainda hoje tremem-me as carnes só em rememorar a audácia desse sujeito!
Desaforo! Atrever-se a querer fazer duma criança de nove anos o porta-voz de seu coração! Bati-lhe os pés; arregacei as mangas da camisa e convidei-o para um duelo de pedras.

II
Uma ocasião espalhara-se pelas ruas da  cidade que o comendador Noronha tinha sido acometido duma forte disenteria.
O Gregório soube do fato quando ia a entrar em casa do João das Neves. Retrocedera como uma bala que  encontrasse tenaz resistência.
"Que entre", mandou-lhe dizer o comendador.
Todo embodocado, ar de profunda  compunção, estendeu a destra ao  comendador.
Excelência, aqui me tem ás suas ordens... gaguejou ele com aduladora e repelente submissão.
- Estou que não posso mais! É daqui p'r'o quintal; do quintal p’rá aqui... Até parece que descobri o moto-contínuo...
— Não há de ser nada, excelência, não há de ser nada...
Homens como o invicto Comendador  Noronha, a cuja presença tenho a honra de me achar, a própria morte parece  temer, porque o seu desaparecimento representa uma calamidade para a pátria que se orgulha de os possuir.
Se me permite: não há como o  assa-peixe ou então chá de  pitanga, ou ainda paraty com polvilho, ou...
— Com sua licença, com sua licença,  interrompera o comendador, saindo ao trote em demanda do quintal.
O Gregório fitara-o com o semblante consternado.   
Minutos depois regressava o comendador com uma cara de inspirar compaixão e riso ao mesmo tempo.
O Gregório quis prosseguir na enumeração das mesinhas, mas o comendador cortou-lhe a vasa; não estava para aturá-lo.
— Qual assa-peixe, qual pitanga!... O que eu queria era saber quem me enviou para este mundo sem minha autorização! - berrou  ele friccionando  freneticamente o seu enorme ventre.
O Gregório rebuscava em seu cérebro uma ideia salvadora, mas inutilmente.
Daria, de bom grado, uma partícula de sua vida para livrar o comendador  daquela enervante disenteria.
Afinal, viu que o melhor era se pôr ao fresco. Renovou os seus oferecimentos, prometendo voltar mais tarde, e saiu.
Um outro chefe (mas este político) que o Gregório vivia a engrossar, era o Bernardo, de cuja filha, a formosa e  espevitada Adélia, recebera nada menos de quatro tábuas, que, juntas às outras, formavam o bonito numero de dezessete, inclusive a que lhe mandara a minha já referida parenta.
Duma feita o Gregório dirigiu-se à casa do Bernardo (aliás major da guarda nacional) todo cheio de si (pois só de si o que o Gregório andava cheio) com um jornal debaixo do braço. Era o caso que linha lido, nesse jornal, um artigo furibundo contra a má administração do coronel Assunção, presidente da  municipalidade.    
Aquilo era um pratinho que muito havia de deliciar ao major, o intransigente chefe duma facção política local. O homem recebeu-o, mostrando-lhe duas tilas de dentes que nunca tinham sentido o benéfico contato duma escova. —Trago um quitute a sua excelência.
E, desdobrando o jornal, pôs-se a ler o aludido artigo em voz retumbante.
Era, de fato, uma sova de criar  micróbios, que um anônimo arrumava no coronel Assunção.
O major escutava-o todo baboso,  rindo-se à bandeira despregada como se aquilo fosse realmente um paparico supimpa para o estômago de seu espírito tacanho.
Ao terminar a leitura, o major  Bernardo tinha crescido mais um palmo - porque a alegria é como o calor: dilata os corpos.
- Gregório da minha alma! Nem sei onde estou que não te arrumo uma beijoca dessas de estalarem como espoleta de espingarda pica-pau!...
Que pena teres a boca tão cabeluda...
Estas ultimas palavras entristeceram o Gregório. Esteve vai não vai à casa do David barbeiro para que lhe raspasse bigodes afim de passar pela subida honra e supremo gozo de receber, em cheio, a beijoca do campanudo major Bernardo.
À força de tanto assoprar os graúdos da minha terra, acabou o Gregório por ser eleito Juiz de Paz.
Protestei energicamente contra esse delito das urnas.
Era eu, então, mais taludo, e alimentava, na verdade, bem tola pretensão de literato e jornalista... Como eu era  ingênuo...
Fui ao Josino, redator-chefe da Rosca, periódico caricato que vivia de farejar  escândalos, botando em camisas de onze varas os mandões da localidade.
Encarapitei-me em suas colunas qual  façanhudo monarca em seu trono, assumi assim uns modos de ardente e zeloso  defensor das coisas da minha terra, e...
Rosca no Gregário!...
De combinação com o caricaturista, apresentei o Gregório aos meus ilustres e pudicos conterrâneos, em fraldas de camisa a pronunciar, na eloquente mudez de gaiatas caricaturas, as palavra, da lei ante um pateta e uma pacovia que se propunham a viver um para outro, como se o coração do homem não fosse um vulcão de fel, um antro em que se abrigam os mais nobres sentimentos em hórrida promiscuidade com os mais requintados instintos da besta; e o da mulher um abismo insondável de contradições, um enigma que tem atravessado incólume os séculos, zombando do olhar do filósofo perscrutador.
Não satisfeito, pu-lo ainda em macabra altitude, depois montado num gordo suíno, e, em seguida, cavalgando um burrico tão magro que mais se assemelhava a uma armação de ossos...
Tempos depois, circunstâncias independentes de minha vontade, obrigaram-me a transferir minha residência para outras paragens. Deixei, saudoso, aquele ninho querido, onde passei a  infância tão alheio aos rigores da vida tumultuosa que, em regra, o rapaz pobre leva numa capital, esse formigueiro humano, onde tão depressa se exaurem nossas forças.

III
Com o decorrer dos tempos, fui perdendo esse fogo que nos abrasa a alma aos vinte anos.
Comecei, então, a sentir algo de anormal, um como espinho a me dilacerar o coração sempre que me lembrava do  Gregório. Era a voz da consciência que se erguia altisonante nas profundezas do meu ser exigindo uma reparação.
— Eu, em teu lugar, mandava-lhe uma carta, disse-me o Farofa, um meu colega e companheiro de república.
— Magnifica ideia. Vou escrever ao Gregório pedindo sua absolvição.
— Escreva lhe com tinta verde... que o a cor do capim e também a do periquito... E depois duma pequena pausa:
— Isto de andares sorumbático a suspirar pela salvação de tua alma, tem nos dado a impressão de nos acharmos a guardar defuntos nesta casa.
O Farofa era o tipo mais perfeito que tenho conhecido do estudante boêmio, incapaz de sustentar, com a devida compostura,  uma conversação sem soltar uma pilhéria, e sem, a propósito de tudo, fazer uma citação de Virgílio, outra de Homero, terminando quase sempre por uma terceira de Rabelais.
A sua alcunha provinha de andar sempre em rixas com a preta da cozinha por causa das farofas mal temporadas.
Escrevi ao Gregório numa noite de  insônia, colocando a carta sobre o meu criado mudo.
No dia seguinte levei-a para o correio, sentindo-me, desde então, outro homem. Este passo teve a virtude de acalmar a revolta de minha alma. Tornei-me como dantes: alegre, folgazão e... bisbilhoteiro. 

IV
Uma tarde -  dez dias após a remessa da carta — discutia eu calorosamente com o Farofa sobre as transcendentais propriedades do nervo ótico do percevejo, o terrível geocorisa dos zoologistas, quando o carteiro assomou à cancela da nossa  habitação.
- Uma carta para Ernesto Penteado. Dum salto arrebatei a carta da mão do homem. Esta minha ligeireza explica-se com as seguintes explicações: assim como vaca bravia é o melhor remédio contra reumatismo, moça bonita é o mais  poderoso antídoto contra a indolência de estudante madraço e também contra os calos do pé, ainda estou por ver um que, ao passar pela sua idade, embora tenha um calo em cada dedo, desse a menor demonstração de estar pisando em brasas.
Eu andava querendo mudar de estado, tinha minhas pretensões com a prima irmã do  Farofa, a qual; morava, por essa época, em Jundiaí. O Farofa era meu advogado; em compensação eu advogava também a causa, em que eram partes litigantes ele e a Dolores do Veiga, quero dizer,  filha do Veiga.        
Do que ai fica se depreende que eu aguardava carta da prima-irmã do meu  inolvidável amigo.
Abri a carta nas vascas do desespero para me cientificar do seu conteúdo.
Leitor amigo tenha dó de mim!... Não pude, por mais que lutasse como um possesso, compreender uma única frase daquela missiva. Entretanto, lá se achavam, em caracteres traçados com negligencia, tão meus como os meus próprios, as mesmas palavras que eu havia escrito ao Gregório onze dias antes.
Dar-se-ia o caso dum fenômeno do sonambulismo?
Quis apelar para: o meu amigo, mas ele havia desaparecido como por encanto.       
Achava-me embrulhado e quem me embrulhara fora o Farofa, o patife do Farofa,  que, aproveitando-se do meu sono de justo, me roubou aquela carta destinada ao Gregório deixando em seu lugar outra que só Deus sabe e que continha!...
Hábil, como poucos, em imitar todas as grafias, cometera a perversidade de embaralhar todas as palavras da malsinada epistola enviando-a em segredo — e sem selo àquela eleita do meu coração!
Eis o que li transido pelo desespero: "Devolvo, intacta, a prova esmagadora da monstruosidade de seu coração. O seu procedimento não encontra justificativa, a não ser que me julgue tão simplória a ponto de acreditar que, com os abalos do comboio e também por vir essa carta sem selo, se tivessem deslocado as palavras, talvez de insulto, a mim dirigidas.
Com desprezo e desconsideração assino-me.
C. S Y.
Como provar minha inocência à essa senhora? Só havia um meio: reproduzir a carta que supus ter enviado ao Gregório servindo-me das mesmíssimas palavras que se achavam na que foi remetida à C. S. Y.
Somente dois meses depois é que, graças ao concurso de dois amigos e três gentis senhoritas pude conseguir a reconstrução fiel das frases de que se compunha a primeira carta.
Reproduzo abaixo, com sua integra, a peça que me pregara Farofa, e que me ia entornando o caldo, no melhor da festa.
O Farofa teve o bom senso de não me aparecer enquanto durou a procela.
Se o pilhasse nessa ocasião, punha o chato como um carrapato!
Eis o tal angu de caroço preparado por aquele rapaz com tripas do Judas:

"Sra. C. S. Y.
"Minha caricatura impelido mocidade, implorar feitas em sua a estas por pessoa, sou que pelas agravadas residia brados  perdão Rosca desta, acusações presença acusações vir, alusivas de pelas quando pelos aí meio a minha ainda e o seu consciência lhe sua  colunas graves dirigida pelas a
"Lhe perdão que dês lhe grandes anos, a pelos venho verdor bastante dissabores pelo meus de enormidade meus pedir  reconsiderando embora causei crime,  atenuada.
"Grande viva que sua ridiculariza o meu quisera individualidade  testemunhar e por o voz, de o para, é lhe lado,  sentimento tel - terão experimento a quão penoso.
"Pensador do o ah! frase na lobo eminente homem deixará do homem o ser Hobbes! de quando.
"Dilacerando satânico que o ferindo é dá de que alma, esse aos o prazer terra tem que nobre! um pares experimentamos uma coração, arrojando mais homem
"Para com o em o olhos, com angustioso grito, ouve, remorso. da quem, momento consciência perdão nos lágrimas luta neste.
Seu etc."
Ernesto Penteado
Juiz de Fora, março de 1907

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