FILME TRÁGICO
INCÊNDIO DO CINEMA
PARIS
Alarma
Seriam 11 horas e
poucos minutos da noite.
Por sobre a urbs cabia um suave e sossegado
silencio.
Passavam, rápidos,
demanda da casa, os últimos retardatários.
À vida, pois, da nossa
pacata “Princesa” não sofrera, por um
momento sequer, a mais leve, amais ligeira modificação: ás 21H00, pontualmente,
dobrara o sino da cadeia; soaram, momentos após, os clarins, estrídulos e
vibrantes...
Estavam, como sempre, à
disposição do público, os Cinemas.
Destes, um, o que
funcionava no elegante e bem montado teatrinho do Eden Juiz de Fora, àquela
hora, havia terminado suas sessões, tendo os seus proprietários resolvido,
naturalmente por necessidade ou conveniência, a passagem de uma fita, que se
destinava ás sessões de hoje, á noite.
Essa fita, americana,
de incomparável beleza, tinha por título — Sacrifício de uma filha — e
baseava-se em sugestivo e empolgante assunto.
Dispostas as coisas
para a passagem do “filme,” entraram para a cabine os srs. José Silva e Camilo
Defeo, um dos proprietários do Cinema Paris, cuja firma é Defeo & Filho.
Estabelecida a corrente
elétrica, foi dado início à experiência.
Achavam-se, então, na
plateia, na expectativa, entre outros, os srs. José Fonseca, Jovelano Marques,
um representante de nome Salvador, de uma casa de acessórios cinematográficos
da Capital Federal, e mais duas ou três pessoas.
Mal começara a
funcionar o aparelho, quando, súbito, uma chama, deu ciência aos circunstantes
de que algo de anormal se passava no interior da cabine.
Efetivamente, ou por
imperícia ou por imprudência ou ainda outra qualquer circunstância, o certo é
que a fita não teve mais exibição e imediatamente o fogo, ateado à celulose,
qual serpente flamívoma, em contorções, comunica-se aos demais “filmes” ali
dispostos para o mesmo fim.
Naturalmente,
insopitavelmente, um grito deu o alarme: estava patente, inegável, um incêndio
que competia debelar, afim de serem evitados maiores males.
E as chamas, rubras,
terríveis, avançavam, cresciam multiplicavam-se, enlaçando a madeira da cabine,
propagando-se ao teto, deitando nuvens que de momento a momento denotavam a
intensidade da devastação.
Para a rua, calma e
deserta, precipitaram-se sem detença, pávidos, transidos, aqueles mesmos que
momentos antes faziam com a alegria a maior e a mais intima camaradagem.
— Fogo!
— Água!
— Incêndio!
— Socorro!
Apitos trinaram mais
insistentemente, pedindo a atenção pública.
Num momento, de todos
os lados, aos roldões, surgiram populares e famílias assomaram ás janelas.
O pequeno sino do
Fórum, tangido por mão de um prestativo popular, vibrou sonoramente despertando
os porventura adormecidos na doce paz do lar.
A cavalaria,
pressurosamente, em disparada, desceu a rua Halfeld, estacando em frente à
Confeitaria.
Providências
Populares que haviam
acudido ao alarma e chefes de famílias que abandonaram o lar, sem hesitação,
tinham já dado início à evacuação dos móveis e mais pertences não só do Éden,
como da própria Confeitaria Rio de Janeiro, que, como se sabe, está anexa ao
Cinema Paris, à rua Halfeld.
Assim, a primeira
escada para a ascensão ao telhado, foi colocada junto ao muro pelo nosso
companheiro José Costabile.
Era tempo! Estalidos,
faúlhas, fumo, estouros, tudo denotava que o fogo progredia, serpenteava,
enroscando-se, a morder rubramente o madeiramento superior, ameaçando
comunicar-se ao telhado da Confeitaria Rio de Janeiro.
Entrementes, o sr. Alferes
Agostinho Pedra, delegado de polícia, presente, sem demora, ao local,
transmitia ordens e em pessoa executava serviços de real necessidade, não
poupando esforços para que o fogo fosse abafado.
Os policiais, ativos,
diligentes, que deram cerco à casa dentro outros eram:
José Pinto Moreira,
Alberto Santos, Abdias J. Batista, Vicente R. Santos, Herácio Antônio Berto,
Mario Hilário, sargentos Galdino, Paes e Sertório, cabo José Anastácio e os
nossos esforçados conterrâneos, srs. Carlos Pagy, Antônio Pagy, Manoel Araújo,
Jacob Betchlufft, Narciso Rosa, Carivaldo Fonseca, Mateus Kascher, Carlos
Duarte, Raul Corrêa, Francisco Pedro, Júlio Guimarães Sobrinho, Dario Chaves,
Francisco e Jovelino Pagy, Antônio Costabile. Gustavo Pompeu de Matos, Casemiro
Dias Rosa, Alfredo Guedes, Aureliano Brandão, Salim José Tauil, Doralino Silva,
Augusto Capuça, Daniel Corrêa, José Amâncio, Joaquim Pinto de Mesquita, Guido
Loddi, Manoel Costabile, Otavio Leite, Afonso Tardio, Antônio Pinto Villar e
outros, cujos nomes não conseguimos — escalando o telhado da casa incendiada, a
machado, tentavam, contra todas as terríveis ciladas do fogo o isolamento do
prédio.
Aos trancos, aos
trambolhões, as folhas de zinco foram passando do telhado do Eden para o meio
da rua, onde estacionava uma enorme o curiosa multidão.
A
Confeitaria
Era sobremodo desolador
o aspecto da velha e querida Confeitaria Rio de Janeiro, outrora de propriedade
do sr. Gustavo Cruz e atualmente dos srs. Ribeiro & Noronha.
O seu interior, do
ordinário disposto com acentuado bom-gosto e capricho, tendo aos lados e ao
centro do salão, mostradores, balcão, mesinhas, cadeiras, prateleiras,
garrafeiras e outros objetos, foi subitamente transformado na mais terrível
Babel pela invasão desordenada dos populares que, no afã de salvarem tudo quanto
encontravam à mão, atiravam à rua todos os objetos.
Ao centro da rua um
montão indicava o que era, naquele momento, a Confeitaria Rio de Janeiro.
Populares iam e vinham,
ora tomando as dependências do estabelecimento, ora acotovelando-se ás portas, enquanto
que outros, de bacias em punho, conduziam água para o sufocamento do fogo, cada
vez mais em declínio.
Eram 11H20, quando ali
chegou o sr. Jovino Noronha, que então, já recolhido à sua residência, tivera notícia
do ocorrido.
O sr. Coronel José
Ribeiro, em pessoa, havia acompanhado todas as providencias, agindo com
louvável prudência.
Houve uma corrida dos
assistentes, do interior da casa para o exterior, devido a um grito imprudente
de:
— Foge, gente!
Não obstante, o sr.
Jacob Willig, comparecendo, na qualidade de fiscal da Companhia Mineira de
Eletricidade, anunciava que ia interromper o circuito elétrico, deixando,
assim, completamente ás escuras a confeitaria.
O sr. Jovino Noronha,
calmamente, lançou mão do “belga” do primeiro salão e desvendando-o dos
enfeites e da tela que envolviam, retirou o vidro e inflamou a torcida.
Foi tudo. O povo
evacuou. A luz, interrompida, deixou que apenas, tristemente, desoladoramente,
as trevas campeassem, espancadas malmente pelo rebrilhar do lampião.
O
fogo
Enquanto isto, o fogo,
já sopitado o furor das chamas, crepitava nas o vigas e madeiramento do Cinema
Paris, tudo abatendo aos golpes dos luzidios machados, caindo os destroços
sobre o pavimento do Eden Juiz de Fora, que se
transformou num amontoado de ruínas.
Água!
Momentos antes, quando
o fogo havia iniciado a sua ação nefasta, destruidora, o sr. Capitão Antônio
Carvalho Bastos, fiscal da Câmara, dera providências tendentes a que ao local
comparecessem sem demora não só o sr. Martinho Pereira, encarregado das águas,
como os demais auxiliares.
Às 11H40, conduzindo a
mangueira de propriedade da Câmara, chegavam ao local os mencionados
funcionários municipais.
Colocada essa mangueira
no registro da casa do sr. Remo Chellini, a água para logo entrou a jorrar
copiosamente, sendo, por esse modo, à meia noite, completamente, extinto o
terrível incêndio.
Alarmados!
Escusado mencionar que
toda a vizinhança e muito especialmente os hóspedes e moradores do Hotel Rio do
Janeiro, Casa Becker, Vicente Martelli e Theobaldo Marchesini — as mais
próximas da casa incendiada — rasparam tremendo susto.
À chegada de um de
nossos companheiros à rua Halfeld, o sr. dr. José Tito Villar, de mala empunho,
assegurava nervosamente que não estava disposto a novo aperto, idêntico, aliás,
ao que já passara no Grande Hotel de Belo Horizonte...
E por isso, de longe,
assistia ao desenrolar das cenas que se sucediam ininterruptamente.
Iríamos longe se quiséssemos
registrar todos os pormenores do lamentável fato, dentre os quais um nos ficou bem gravado na memória:
— O desmaio de uma senhorinha no Hotel Rio do
Janeiro...
Ponto, porém...
A
valente mocidade!
Quando começavam os
gritos de “Água, gente!” quase nenhum prédio possuía em suas torneiras o
salvador líquido.
A república
“Guanabara”, instalada no prédio da Associação dos Empregados no Comércio, sem
tardança, franqueou ao público a sua casa, oferecendo assim, a todos, meio
fácil de se munirem da água — que na ocasião, representava saliente papel.
Pão
e água!
Estavam os padeiros da
velha Padaria Meilhac, de propriedade do sr. Joaquim Pinto de
Mesquita entregues à labuta costumeira da noite, quando, alarmados, abandonando
as masseiras, acudiram precipites, com arrojo, bem como o seu patrão, escalando
as paredes do prédio incendiado.
Eis aí, como, ainda uma
vez ficou provado que “pão e água" são duas coisas perfeitamente
conciliáveis em todas as emergências da vida!
Vontade
gorada
O sr. Manoel Corrêa
Pinto, empregado na conhecida Bota Mineira, ao ouvir os gritos de
“socorro", não titubeou.
Deu força ás gambias, ganhou terreno e ei-lo a tentar
jeito de se fazerem soar os sinos da nossa matriz.
Debalde! A tentativa
não deu resultado! ...
E o sr. Corrêa ficou — gorado
— no seu desejo...
Feridos
Na fúria com que arremeteram
ao fogo, para extingui-lo, saíram feridas as seguintes pessoas: Manoel Pinto
Corrêa Neto, o popular Zizinho, na mão esquerda; Narciso Rosa, em diversas
partes do corpo; José Amâncio, em um dos dedos da mão esquerda e no lábio
inferior; Otávio Leite, num dedo da mão esquerda; Manoel Costabile, com uma
pisada no dedo anular da mão esquerda; Afonso Tardio, com profundos golpes de
zinco em vários dedos, José Silva (o operador do Cinema Paris), toda a mão
esquerda; Antônio Pinto Villar, nas mãos, pés e outras partes do corpo; Dario
Chaves, nas pernas e corpo, em vários lugares.
É natural que outros
denodados populares também sofressem queimaduras, contusões, etc. — A
balbúrdia, porém, e o adiantado da hora em que traçamos estas linhas — duas da
madrugada — não nos permitem maiores averiguações.
Os
prejuízos
O Cinema Paris, que era
de construção modesta — quatro paredes e coberto de zinco, tendo o teto de lona
grossa, pintada, meio salão assoalhado — ficou reduzido apenas a carcaça,
conforme se vê dos destroços da rua Halfeld.
Os prejuízos de seus
proprietários são calculados em quantia ainda não precisada, porém superiores a
três contos de réis, segundo ouvimos.
— Os srs. Ribeiro & Noronha, proprietários
da Confeitaria, também tiveram não pequeno prejuízo.
O
inquérito
A polícia abriu
inquérito e apurará a responsabilidade do desaparecimento do Cinema Paris.
Nota
final
Dignos de aplausos — os
mais calorosos — autoridades e populares, que representaram o papel esplendido
de audazes bombeiros — tudo calmamente, sem atropelo, sincera e despretensiosamente.
Jornal "O Pharol", ANO XLIV, Nº 233
Juiz de Fora, domingo, 3 de outubro de 1909
Juiz de Fora, domingo, 3 de outubro de 1909
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