quarta-feira, 20 de agosto de 2014

1909 - INCÊNDIO DO CINEMA PARIS (ÉDEN JUIZ DE FORA)



FILME TRÁGICO
INCÊNDIO DO CINEMA PARIS

Alarma
Seriam 11 horas e poucos minutos da noite.
Por sobre a urbs cabia um suave e sossegado silencio.
Passavam, rápidos, demanda da casa, os últimos retardatários.
À vida, pois, da nossa pacata “Princesa” não sofrera, por um momento sequer, a mais leve, amais ligeira modificação: ás 21H00, pontualmente, dobrara o sino da cadeia; soaram, momentos após, os clarins, estrídulos e vibrantes...
Estavam, como sempre, à disposição do público, os Cinemas.
Destes, um, o que funcionava no elegante e bem montado teatrinho do Eden Juiz de Fora, àquela hora, havia terminado suas sessões, tendo os seus proprietários resolvido, naturalmente por necessidade ou conveniência, a passagem de uma fita, que se destinava ás sessões de hoje, á noite.
Essa fita, americana, de incomparável beleza, tinha por título — Sacrifício de uma filha — e baseava-se em sugestivo e empolgante assunto.
Dispostas as coisas para a passagem do “filme,” entraram para a cabine os srs. José Silva e Camilo Defeo, um dos proprietários do Cinema Paris, cuja firma é Defeo & Filho.
Estabelecida a corrente elétrica, foi dado início à experiência.
Achavam-se, então, na plateia, na expectativa, entre outros, os srs. José Fonseca, Jovelano Marques, um representante de nome Salvador, de uma casa de acessórios cinematográficos da Capital Federal, e mais duas ou três pessoas.
Mal começara a funcionar o aparelho, quando, súbito, uma chama, deu ciência aos circunstantes de que algo de anormal se passava no interior da cabine.
Efetivamente, ou por imperícia ou por imprudência ou ainda outra qualquer circunstância, o certo é que a fita não teve mais exibição e imediatamente o fogo, ateado à celulose, qual serpente flamívoma, em contorções, comunica-se aos demais “filmes” ali dispostos para o mesmo fim.
Naturalmente, insopitavelmente, um grito deu o alarme: estava patente, inegável, um incêndio que competia debelar, afim de serem evitados maiores males.      
E as chamas, rubras, terríveis, avançavam, cresciam multiplicavam-se, enlaçando a madeira da cabine, propagando-se ao teto, deitando nuvens que de momento a momento denotavam a intensidade da devastação.
Para a rua, calma e deserta, precipitaram-se sem detença, pávidos, transidos, aqueles mesmos que momentos antes faziam com a alegria a maior e a mais intima camaradagem.
 — Fogo!
 — Água!
 — Incêndio!
 — Socorro!
Apitos trinaram mais insistentemente, pedindo a atenção pública.
Num momento, de todos os lados, aos roldões, surgiram populares e famílias assomaram ás janelas.
O pequeno sino do Fórum, tangido por mão de um prestativo popular, vibrou sonoramente despertando os porventura adormecidos na doce paz do lar.
A cavalaria, pressurosamente, em disparada, desceu a rua Halfeld, estacando em frente à Confeitaria.

Providências
Populares que haviam acudido ao alarma e chefes de famílias que abandonaram o lar, sem hesitação, tinham já dado início à evacuação dos móveis e mais pertences não só do Éden, como da própria Confeitaria Rio de Janeiro, que, como se sabe, está anexa ao Cinema Paris, à rua Halfeld.
Assim, a primeira escada para a ascensão ao telhado, foi colocada junto ao muro pelo nosso companheiro José Costabile.
Era tempo! Estalidos, faúlhas, fumo, estouros, tudo denotava que o fogo progredia, serpenteava, enroscando-se, a morder rubramente o madeiramento superior, ameaçando comunicar-se ao telhado da Confeitaria Rio de Janeiro.
Entrementes, o sr. Alferes Agostinho Pedra, delegado de polícia, presente, sem demora, ao local, transmitia ordens e em pessoa executava serviços de real necessidade, não poupando esforços para que o fogo fosse abafado.
Os policiais, ativos, diligentes, que deram cerco à casa dentro outros eram:
José Pinto Moreira, Alberto Santos, Abdias J. Batista, Vicente R. Santos, Herácio Antônio Berto, Mario Hilário, sargentos Galdino, Paes e Sertório, cabo José Anastácio e os nossos esforçados conterrâneos, srs. Carlos Pagy, Antônio Pagy, Manoel Araújo, Jacob Betchlufft, Narciso Rosa, Carivaldo Fonseca, Mateus Kascher, Carlos Duarte, Raul Corrêa, Francisco Pedro, Júlio Guimarães Sobrinho, Dario Chaves, Francisco e Jovelino Pagy, Antônio Costabile. Gustavo Pompeu de Matos, Casemiro Dias Rosa, Alfredo Guedes, Aureliano Brandão, Salim José Tauil, Doralino Silva, Augusto Capuça, Daniel Corrêa, José Amâncio, Joaquim Pinto de Mesquita, Guido Loddi, Manoel Costabile, Otavio Leite, Afonso Tardio, Antônio Pinto Villar e outros, cujos nomes não conseguimos — escalando o telhado da casa incendiada, a machado, tentavam, contra todas as terríveis ciladas do fogo o isolamento do prédio.
Aos trancos, aos trambolhões, as folhas de zinco foram passando do telhado do Eden para o meio da rua, onde estacionava uma enorme o curiosa multidão.

A Confeitaria
Era sobremodo desolador o aspecto da velha e querida Confeitaria Rio de Janeiro, outrora de propriedade do sr. Gustavo Cruz e atualmente dos srs. Ribeiro & Noronha.
O seu interior, do ordinário disposto com acentuado bom-gosto e capricho, tendo aos lados e ao centro do salão, mostradores, balcão, mesinhas, cadeiras, prateleiras, garrafeiras e outros objetos, foi subitamente transformado na mais terrível Babel pela invasão desordenada dos populares que, no afã de salvarem tudo quanto encontravam à mão, atiravam à rua todos os objetos.
Ao centro da rua um montão indicava o que era, naquele momento, a Confeitaria Rio de Janeiro.
Populares iam e vinham, ora tomando as dependências do estabelecimento, ora acotovelando-se ás portas, enquanto que outros, de bacias em punho, conduziam água para o sufocamento do fogo, cada vez mais em declínio.
Eram 11H20, quando ali chegou o sr. Jovino Noronha, que então, já recolhido à sua residência, tivera notícia do ocorrido.
O sr. Coronel José Ribeiro, em pessoa, havia acompanhado todas as providencias, agindo com louvável prudência.
Houve uma corrida dos assistentes, do interior da casa para o exterior, devido a um grito imprudente de:
 — Foge, gente!
Não obstante, o sr. Jacob Willig, comparecendo, na qualidade de fiscal da Companhia Mineira de Eletricidade, anunciava que ia interromper o circuito elétrico, deixando, assim, completamente ás escuras a confeitaria.
O sr. Jovino Noronha, calmamente, lançou mão do “belga” do primeiro salão e desvendando-o dos enfeites e da tela que envolviam, retirou o vidro e inflamou a torcida.
Foi tudo. O povo evacuou. A luz, interrompida, deixou que apenas, tristemente, desoladoramente, as trevas campeassem, espancadas malmente pelo rebrilhar do lampião.

O fogo
Enquanto isto, o fogo, já sopitado o furor das chamas, crepitava nas o vigas e madeiramento do Cinema Paris, tudo abatendo aos golpes dos luzidios machados, caindo os destroços sobre o pavimento do Eden Juiz de Fora, que se transformou num amontoado de ruínas.

Água!
Momentos antes, quando o fogo havia iniciado a sua ação nefasta, destruidora, o sr. Capitão Antônio Carvalho Bastos, fiscal da Câmara, dera providências tendentes a que ao local comparecessem sem demora não só o sr. Martinho Pereira, encarregado das águas, como os demais auxiliares.
Às 11H40, conduzindo a mangueira de propriedade da Câmara, chegavam ao local os mencionados funcionários municipais.
Colocada essa mangueira no registro da casa do sr. Remo Chellini, a água para logo entrou a jorrar copiosamente, sendo, por esse modo, à meia noite, completamente, extinto o terrível incêndio.

Alarmados!
Escusado mencionar que toda a vizinhança e muito especialmente os hóspedes e moradores do Hotel Rio do Janeiro, Casa Becker, Vicente Martelli e Theobaldo Marchesini — as mais próximas da casa incendiada — rasparam tremendo susto.
À chegada de um de nossos companheiros à rua Halfeld, o sr. dr. José Tito Villar, de mala empunho, assegurava nervosamente que não estava disposto a novo aperto, idêntico, aliás, ao que já passara no Grande Hotel de Belo Horizonte...
E por isso, de longe, assistia ao desenrolar das cenas que se sucediam ininterruptamente.
Iríamos longe se quiséssemos registrar todos os pormenores do lamentável fato, dentre os quais  um nos ficou bem gravado na memória:
 — O desmaio de uma senhorinha no Hotel Rio do Janeiro...
Ponto, porém...

A valente mocidade!
Quando começavam os gritos de “Água, gente!” quase nenhum prédio possuía em suas torneiras o salvador líquido.
A república “Guanabara”, instalada no prédio da Associação dos Empregados no Comércio, sem tardança, franqueou ao público a sua casa, oferecendo assim, a todos, meio fácil de se munirem da água — que na ocasião, representava saliente papel.

Pão e água!
Estavam os padeiros da velha Padaria Meilhac, de propriedade do sr. Joaquim Pinto de Mesquita entregues à labuta costumeira da noite, quando, alarmados, abandonando as masseiras, acudiram precipites, com arrojo, bem como o seu patrão, escalando as paredes do prédio incendiado.
Eis aí, como, ainda uma vez ficou provado que “pão e água" são duas coisas perfeitamente conciliáveis em todas as emergências da vida!

Vontade gorada
O sr. Manoel Corrêa Pinto, empregado na conhecida Bota Mineira, ao ouvir os gritos de “socorro", não titubeou.
Deu força ás gambias, ganhou terreno e ei-lo a tentar jeito de se fazerem soar os sinos da nossa matriz.
Debalde! A tentativa não deu resultado! ...
E o sr. Corrêa ficou — gorado — no seu desejo...

Feridos
Na fúria com que arremeteram ao fogo, para extingui-lo, saíram feridas as seguintes pessoas: Manoel Pinto Corrêa Neto, o popular Zizinho, na mão esquerda; Narciso Rosa, em diversas partes do corpo; José Amâncio, em um dos dedos da mão esquerda e no lábio inferior; Otávio Leite, num dedo da mão esquerda; Manoel Costabile, com uma pisada no dedo anular da mão esquerda; Afonso Tardio, com profundos golpes de zinco em vários dedos, José Silva (o operador do Cinema Paris), toda a mão esquerda; Antônio Pinto Villar, nas mãos, pés e outras partes do corpo; Dario Chaves, nas pernas e corpo, em vários lugares.
É natural que outros denodados populares também sofressem queimaduras, contusões, etc. — A balbúrdia, porém, e o adiantado da hora em que traçamos estas linhas — duas da madrugada — não nos permitem maiores averiguações.

Os prejuízos
O Cinema Paris, que era de construção modesta — quatro paredes e coberto de zinco, tendo o teto de lona grossa, pintada, meio salão assoalhado — ficou reduzido apenas a carcaça, conforme se vê dos destroços da rua Halfeld.
Os prejuízos de seus proprietários são calculados em quantia ainda não precisada, porém superiores a três contos de réis, segundo ouvimos.
 — Os srs. Ribeiro & Noronha, proprietários da Confeitaria, também tiveram não pequeno prejuízo.

O inquérito
A polícia abriu inquérito e apurará a responsabilidade do desaparecimento do Cinema Paris.

Nota final
Dignos de aplausos — os mais calorosos — autoridades e populares, que representaram o papel esplendido de audazes bombeiros — tudo calmamente, sem atropelo, sincera e despretensiosamente.

Jornal "O Pharol", ANO XLIV, Nº 233
Juiz de Fora, domingo, 3 de outubro de 1909

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